Concupiscência: o que é, significado e exemplos

O que exatamente significa o termo “concupiscência”?

A concupiscência é um termo profundo e multifacetado, com raízes em diversas tradições filosóficas e teológicas, que descreve uma inclinação ou um apetite desordenado em relação a bens terrenos ou prazeres. Não se trata meramente de um desejo, mas de uma tendência persistente e muitas vezes intensa que pode direcionar a vontade humana para longe de um propósito moral ou espiritual mais elevado. Este impulso, em sua essência, revela uma certa fragilidade da natureza humana pós-queda, um eco da desarmonia original entre a razão e as paixões. A palavra evoca uma luta interna, onde a inclinação para o prazer ou a posse entra em conflito com as exigências da virtude ou da lei divina.

Muitas vezes, a concupiscência é associada a uma força interior disruptiva que perturba a ordem da alma e do corpo. Essa desordem não anula a liberdade humana, mas a torna um campo de batalha, onde a vontade é constantemente desafiada a escolher entre a satisfação imediata de um desejo e a busca por um bem maior, transcendente ou moralmente correto. A compreensão deste conceito é vital para entender a complexidade da condição humana e a necessidade de autodomínio. Ela atua como um lembrete constante da tendência humana para o egoísmo e para a gratificação instantânea, em detrimento de valores mais duradouros.

No contexto teológico cristão, especialmente na tradição católica, a concupiscência é definida como uma fricção constante entre o espírito e a carne, uma consequência direta do Pecado Original que afetou toda a humanidade. Ela não é considerada pecado em si mesma, mas sim uma inclinação para o pecado, um combustível que, se não for devidamente gerenciado pela razão e pela graça, pode levar a atos pecaminosos. Esta distinção é crucial: a concupiscência é a “matéria-prima” da tentação, o terreno fértil onde os vícios podem florescer se a vigilância e a disciplina espiritual não forem mantidas.

A manifestação da concupiscência pode ser variada, não se restringindo apenas a desejos sexuais, embora essa seja uma das associações mais comuns. Ela abrange a ganância pelo poder, a avidez por riquezas materiais, a busca insaciável por reconhecimento, e até mesmo a glutonaria. Em cada uma dessas formas, o cerne da concupiscência reside na busca desordenada de um bem particular, que é transformado em um fim em si mesmo, desconsiderando seu lugar apropriado na hierarquia de valores. A concupiscência, portanto, desvia o indivíduo de sua verdadeira finalidade e do equilíbrio.

Esta inclinação desordenada não se restringe a um grupo específico de pessoas; ela é uma realidade universal da condição humana. Filósofos e pensadores de diversas épocas e culturas, embora não utilizassem o mesmo termo, frequentemente descreviam fenômenos semelhantes, reconhecendo a luta interna entre o ideal e o apetite. A compreensão dessa tendência inata é o primeiro passo para o autoconhecimento e para a busca de estratégias eficazes para lidar com ela. É um elemento fundamental na exploração da moralidade e da ética pessoal.

A concupiscência, portanto, pode ser vista como um desafio constante para o ser humano, uma prova da sua capacidade de autodeterminação e de sua busca por aperfeiçoamento. Ela não é uma condenação, mas uma condição a ser enfrentada com sabedoria e discernimento. O controle desses apetites desordenados exige esforço contínuo e a prática de virtudes como a temperança, a castidade e a moderação. A vida virtuosa é, em grande parte, uma resposta consciente a esses impulsos, buscando alinhar os desejos com a razão e a vontade.

Qual é a origem etimológica de “concupiscência” e como ela se relaciona com seu sentido atual?

A palavra “concupiscência” tem uma origem latina profunda, derivando do termo concupiscentia. Este, por sua vez, é formado pelo prefixo con-, que significa “com” ou “intensidade”, e pelo verbo cupere, que significa “desejar ardentemente” ou “apetecer”. Assim, literalmente, concupiscentia denota um desejo intenso e veemente, uma aspiração ou um apetite fervoroso por algo. A raiz latina sublinha a força e a profundidade dessa inclinação, que não é um mero querer, mas um anseio que pode se tornar avassalador e dominante.

Essa etimologia já nos oferece uma pista crucial sobre o significado do termo ao longo da história. O aspecto de “desejo intenso” é mantido, mas é a sua conotação de “desordenado” ou “excessivo” que se desenvolveu e se tornou predominante, especialmente no contexto teológico. A ideia de que um desejo pode ser tão poderoso a ponto de se tornar problemático ou moralmente questionável é intrínseca à sua formação linguística. A intensidade, que por si só poderia ser neutra, adquire uma nuance negativa quando associada à falta de controle ou à inclinação para o proibido.

No latim clássico, cupere podia ser usado em um sentido neutro, para expressar qualquer desejo forte, inclusive desejos legítimos ou virtuosos. No entanto, o termo concupiscentia, à medida que foi adotado e desenvolvido no latim eclesiástico e filosófico, começou a adquirir uma conotação mais específica e frequentemente negativa. A influência da Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento) e da Vulgata (a tradução latina da Bíblia por São Jerônimo) foi fundamental para moldar o sentido que hoje conhecemos. Nestas traduções, termos hebraicos e gregos que denotavam desejos maus ou ilícitos foram frequentemente traduzidos por concupiscentia.

Um exemplo notável é a tradução da palavra grega epithymia (ἐπιθυμία) para concupiscentia. Enquanto epithymia também pode significar um desejo neutro, no Novo Testamento, particularmente nas epístolas paulinas, ela é frequentemente empregada para descrever um desejo pecaminoso ou carnal. Por exemplo, em Romanos 7:7, São Paulo fala: “Não conhecera eu a cobiça [epithymia] se a lei não dissesse: Não cobiçarás.” A escolha de concupiscentia para traduzir este conceito solidificou sua associação com inclinações moralmente questionáveis e apetites desordenados, especialmente aqueles que se opõem à lei divina ou à razão.

A evolução semântica do termo reflete a crescente preocupação das tradições filosóficas e religiosas com o domínio das paixões e a luta contra os impulsos egoístas. Não é apenas o desejo em si que é problemático, mas a sua natureza não regulada pela razão ou pela virtude. A concupiscência, portanto, passou a significar não apenas um desejo intenso, mas um desejo que tende a ser indisciplinado e excessivo, levando o indivíduo a buscar satisfação em algo que pode ser prejudicial a si mesmo ou aos outros. Esta ênfase na desordem é o que conecta a etimologia ao sentido atual.

Assim, a etimologia de “concupiscência” revela uma progressão de um conceito de desejo intenso para um conceito de desejo desordenado e, frequentemente, pecaminoso. O prefixo con- amplifica a ideia de cupere, indicando uma totalidade ou uma consumação do desejo, que se torna tão dominante a ponto de obscurecer a razão e a vontade. Esse processo de especialização semântica reflete a maneira como as sociedades, especialmente as com forte influência teológica, buscaram categorizar e compreender os impulsos humanos que desviavam o indivíduo do caminho da retidão e da moderação.

A relação entre a origem etimológica e o sentido atual é de continuidade e refinamento. A intensidade do desejo (cupere) permanece no cerne, mas a dimensão de “desordem” ou “mau direcionamento” (influenciada pelo contexto teológico) tornou-se a característica definidora. Essa dualidade entre a força do impulso e sua potencial perversão é o que torna o conceito de concupiscência tão poderoso e relevante para a compreensão da natureza humana e de seus desafios morais. A palavra encapsula uma luta intrínseca pela autodisciplina e pela busca por um propósito mais elevado.

Como a concupiscência foi compreendida na filosofia grega antiga?

Embora a palavra “concupiscência” em sua forma exata e com suas conotações teológicas específicas não existisse na filosofia grega antiga, os pensadores gregos exploraram extensivamente o conceito de desejos, paixões e apetites, e a forma como esses elementos interagem com a razão e a virtude. Eles frequentemente discutiam a luta interna entre o aspecto racional e irracional da alma. Um dos primeiros e mais influentes a abordar essa dinâmica foi Platão, que em sua obra A República, descreve a alma humana como tripartite, composta por diferentes elementos que precisam estar em harmonia e hierarquia.

Para Platão, a alma humana era dividida em três partes principais: a parte racional (logistikon), responsável pela razão e pelo pensamento; a parte irascível ou espirituosa (thymoeides), ligada à coragem e à emoção nobre; e a parte concupiscível ou apetitiva (epithymetikon), associada aos desejos corporais e às necessidades básicas, como fome, sede e desejos sexuais. A concupiscência, no sentido platônico, seria primariamente essa parte apetitiva da alma. O grande desafio, segundo Platão, era que a parte racional governasse as outras duas, garantindo a justiça e o equilíbrio interior.

A desordem na alma, para Platão, surgiria quando a parte apetitiva ou a irascível dominassem a razão. Se os desejos da parte concupiscível se tornassem excessivos ou descontrolados, o indivíduo se tornaria escravo de seus prazeres, perdendo a capacidade de agir de forma virtuosa. Essa desarmonia interna era vista como a raiz de muitas injustiças e vícios na sociedade e na vida pessoal. A busca pela virtude, portanto, envolvia a subordinação dos apetites e das emoções à razão, uma ideia que ecoa o conceito posterior de temperança.

Aristóteles, discípulo de Platão, também explorou profundamente a natureza dos desejos e das paixões em suas obras, notavelmente na Ética a Nicômaco. Ele não dividia a alma da mesma forma tripartite de Platão, mas reconhecia a existência de uma parte racional e uma parte irracional, sendo esta última a sede das paixões (pathos). Para Aristóteles, as paixões não eram intrinsecamente boas nem más; o que importava era a forma como eram direcionadas e moderadas. Ele defendia a ideia do “justo meio” (mesotes), onde a virtude residia no equilíbrio entre os excessos e as deficiências das paixões.

A virtude da temperança (sophrosyne) era particularmente importante para Aristóteles no contexto dos desejos e prazeres sensoriais. A temperança consistia em ter os apetites sob controle da razão, desfrutando dos prazeres de forma moderada e apropriada, sem cair na intemperança (excesso) ou na insensibilidade (deficiência). O intemperante era aquele que era dominado por seus desejos, incapaz de resistir a eles, demonstrando uma fraqueza de caráter. Essa luta para moderar os apetites é o equivalente grego ao que mais tarde seria chamado de luta contra a concupiscência desordenada.

Os filósofos estoicos, como Zenão de Cítio e Sêneca, levaram essa ideia ainda mais longe, defendendo a apatia (apatheia) ou a ausência de paixões como o ideal para o sábio. Para eles, as paixões eram perturbações da alma (tarachai) que impediam a razão de funcionar corretamente e levavam ao sofrimento. Embora não condenassem os desejos naturais por si mesmos, eles advogavam um controle rigoroso sobre eles, buscando a tranquilidade da alma através da aceitação do destino e da erradicação dos desejos que estavam além do controle individual. A ênfase estoica no controle das emoções e apetites antecipa a disciplina necessária para combater a concupiscência.

Em suma, a filosofia grega antiga, embora não utilizasse o termo “concupiscência”, abordou suas manifestações através da análise da natureza dos desejos e paixões, da busca pelo domínio da razão sobre os apetites e da importância da virtude da temperança. A ideia de que os desejos podem ser desordenados e que a sua desordem leva a uma vida menos virtuosa e menos feliz era um tema central. Essa reflexão sobre o autodomínio e a busca pelo equilíbrio interior lançou as bases para as compreensões posteriores da concupiscência em contextos religiosos e morais.

De que forma Santo Agostinho definiu a concupiscência e sua ligação com o Pecado Original?

Santo Agostinho de Hipona é, sem dúvida, uma das figuras mais influentes na formação da doutrina da concupiscência no pensamento ocidental, especialmente no contexto cristão. Para Agostinho, a concupiscência não era meramente um desejo intenso, mas a própria tendência desordenada que acompanha a natureza humana decaída, sendo uma consequência direta e intrínseca do Pecado Original. Ele argumentava que, antes da queda de Adão e Eva, a vontade humana era perfeitamente subordinada a Deus, e os apetites do corpo estavam em harmonia com a razão, sem qualquer perturbação.

Com o Pecado Original, a humanidade perdeu essa harmonia primordial. A desobediência de Adão resultou em uma ruptura fundamental: a vontade humana, que antes estava ordenada para Deus, tornou-se desordenada, e os apetites inferiores, antes submissos à razão, rebelaram-se contra ela. Agostinho usava o termo latino libido para descrever essa força desordenada, que não se restringia ao desejo sexual, mas abrangia a cobiça de poder (libido dominandi) e a cobiça de bens (libido habendi), além da cobiça sexual (libido sentiendi ou libido carnis). A concupiscência, portanto, é a manifestação dessa libido universal.

A concupiscência, segundo Agostinho, não é pecado em si, mas é a “lei do pecado” que reside em nossos membros, uma espécie de ferida ou fraqueza herdada que nos inclina para o mal. Ela permanece na pessoa batizada, mesmo após o pecado ter sido perdoado, como uma fonte de tentação e um campo de batalha contínuo para a vontade. Essa “concupiscência remanescente” é a matéria com a qual o cristão deve lutar ao longo da vida, buscando a virtude e a graça divina para superá-la. A doutrina agostiniana enfatiza a perda da integridade e a desordem interior.

Agostinho via a concupiscência como a manifestação contínua da rebelião original. O corpo, que deveria ser um instrumento da alma, agora tem seus próprios impulsos independentes da razão. Ele ilustrava isso frequentemente com o exemplo do desejo sexual que surge independentemente da vontade consciente, demonstrando a perda de controle sobre os próprios membros. Essa falta de domínio sobre si mesmo é um sinal da profunda desintegração que o pecado causou na natureza humana. A concupiscência, nesse sentido, é a prova constante do estado de alienação do homem de Deus.

Essa visão agostiniana da concupiscência teve um impacto imenso no pensamento cristão ocidental, especialmente no desenvolvimento da teologia do pecado e da graça. Para Agostinho, a humanidade estava em um estado de miséria espiritual devido ao Pecado Original e à concupiscência que dele se seguiu, necessitando da graça divina para qualquer possibilidade de salvação e retidão. Ele via a vida cristã como uma luta constante, onde a graça divina auxilia a vontade a dominar esses apetites desordenados e a direcionar o coração para Deus.

Agostinho argumentava que, por causa da concupiscência, a humanidade está em um estado de massa peccati, uma massa de pecado, incapaz por si mesma de buscar a Deus ou de fazer o bem genuíno. A livre-escolha não está perdida, mas está gravemente enfraquecida e inclinada ao mal. A concupiscência, portanto, é um lembrete constante da necessidade da intervenção divina e da centralidade da graça na vida moral e espiritual. Ela não é eliminada pelo batismo, mas sua culpa é removida, e a luta contra ela se torna parte do processo de santificação.

A definição agostiniana de concupiscência, como a ferida do Pecado Original que nos inclina para o mal, marcou profundamente a teologia subsequente. Essa compreensão sublinha a vulnerabilidade humana e a necessidade de uma dependência constante de Deus para superar os desafios morais e espirituais. A concupiscência, vista como um legado da Queda, serve como um motor para a humildade e a busca pela graça, elementos essenciais na jornada de fé.

Qual a visão de São Tomás de Aquino sobre a concupiscência e as paixões?

São Tomás de Aquino, o renomado teólogo e filósofo medieval, desenvolveu uma compreensão matizada da concupiscência, baseando-se em Aristóteles e adaptando a teologia agostiniana. Para Aquino, a concupiscência é a “matéria” da tentação, uma inclinação para o pecado que deriva da desordem dos apetites sensíveis. Diferente de Agostinho, que enfatizava a concupiscência como uma punição inerente ao Pecado Original que continuava a ser uma força poderosa e quase inerradicável, Aquino via a concupiscência como a privação da justiça original, não uma entidade substancialmente má.

Aquino partia da premissa de que o ser humano é uma unidade de corpo e alma, e que os apetites sensíveis (concupiscível e irascível) são partes naturais da constituição humana. No estado de inocência original, antes do pecado, esses apetites estavam perfeitamente subordinados à razão e à vontade, sob o domínio da graça. A perda da justiça original, que foi o efeito primário do Pecado Original, resultou na desobediência dos apetites à razão. Essa “desobediência” é o que Aquino chamava de concupiscência – uma deficiência ou falta de subordinação adequada.

Para São Tomás, as paixões (incluindo os apetites sensíveis) não são intrinsecamente más. Elas são movimentos do apetite sensível em resposta ao bem ou ao mal percebido e podem ser boas ou más dependendo de serem ou não ordenadas pela razão. A concupiscência, portanto, não é o apetite em si, mas a sua inclinação desordenada. Por exemplo, o desejo de comer é natural; a glutonaria (um desejo desordenado) é uma manifestação da concupiscência. O desejo sexual é natural; a luxúria (um desejo desordenado) é concupiscência.

Aquino distinguia entre a concupiscência como “pena” do pecado e a concupiscência como “pecado”. Como pena, a concupiscência é a inclinação ao mal que permanece mesmo nos batizados. Ela não é pecado se a vontade não consente a ela. No entanto, se a vontade cede a essa inclinação, então o pecado é cometido. Essa distinção é vital para Aquino, pois ele defendia que o livre-arbítrio permanece intacto após o Pecado Original, embora enfraquecido. O homem ainda tem a capacidade de escolher o bem, embora com mais dificuldade devido à concupiscência.

A visão tomista da concupiscência é mais otimista que a agostiniana no sentido de que ela não considera a natureza humana totalmente corrompida. A razão e a vontade ainda podem, com o auxílio da graça, controlar e direcionar os apetites. A concupiscência é uma ferida, não uma destruição completa. Ela torna a vida moral mais difícil e a luta contra o pecado mais árdua, mas não anula a capacidade humana de buscar a virtude e a Deus. A vida virtuosa é um processo de subordinar os apetites à razão iluminada pela fé.

A importância de São Tomás de Aquino reside em sua capacidade de integrar a filosofia aristotélica com a teologia cristã, oferecendo uma visão mais sistemática e racional sobre a concupiscência e as paixões. Ele enfatiza que a luta contra a concupiscência envolve não apenas a repressão, mas a ordenação e purificação dos apetites, para que eles possam servir ao bem e à virtude. Esta visão influenciou profundamente o ensinamento da Igreja Católica sobre a moralidade e a natureza humana.

Em síntese, para São Tomás de Aquino, a concupiscência é a desordem dos apetites sensíveis decorrente da perda da justiça original. Ela é uma inclinação ao pecado, mas não é pecado em si mesma. As paixões, por sua vez, são movimentos naturais que precisam ser regulados pela razão e pela vontade. A superação da concupiscência envolve a virtude, especialmente a temperança, e a ação da graça divina para restaurar a ordem na alma e dirigir todos os desejos para o bem último.

Como as Reformas Protestantes, especialmente Lutero e Calvino, abordaram a concupiscência?

As Reformas Protestantes, lideradas por figuras como Martinho Lutero e João Calvino, trouxeram uma reinterpretação significativa da doutrina da concupiscência, divergindo de certas nuances do pensamento católico medieval, especialmente em relação ao seu impacto sobre o estado da natureza humana após a Queda. Para Lutero, a concupiscência era mais do que uma mera inclinação desordenada; ela era uma corrupção intrínseca da natureza humana, tão profunda que ele a considerava pecado em si mesma, mesmo antes de qualquer consentimento da vontade.

Martinho Lutero, em sua teologia, enfatizava a doutrina do Pecado Original de forma radical. Ele acreditava que a concupiscência era uma “luxúria inata”, uma inclinação irrefreável para o egoísmo e para o mal, que permeava todos os aspectos do ser humano: mente, vontade e emoções. Para Lutero, o ser humano era totalmente depravado após a Queda, incapaz de qualquer bem verdadeiro por si mesmo. A concupiscência era a evidência constante dessa depravação total, uma marca indelével do pecado que nunca era totalmente erradicada nesta vida, mesmo nos justificados pela fé.

Ao contrário da visão tomista, que distinguia a concupiscência da culpa do pecado, Lutero argumentava que a concupiscência era o pecado que permanecia no crente. Embora o crente fosse declarado justo (justificação) pela fé em Cristo, a concupiscência persistia como uma realidade poderosa, uma “natureza pecaminosa” que lutava contra o espírito. Essa luta constante era a prova da contínua necessidade da graça divina e da justificação pela fé, pois o ser humano nunca alcançaria a perfeição moral completa nesta vida devido a essa corrupção inerente.

João Calvino, outro pilar da Reforma, compartilhava uma visão semelhante, embora talvez mais sistemática. Para Calvino, a concupiscência era o “fermento do pecado”, a fonte de todos os males e a desordem que permeava toda a natureza humana após a Queda. Em suas Institutas da Religião Cristã, Calvino descreveu a concupiscência como a depravação total que afeta não apenas os apetites sensoriais, mas também o intelecto e a vontade, tornando o homem incapaz de qualquer bem que agrade a Deus por seus próprios méritos.

Para Calvino, a concupiscência é a “fábrica” de ídolos e de todos os pecados, e não é meramente uma fraqueza, mas um pecado ativo e contínuo que reside no coração do homem. Ela permanece mesmo após a regeneração, sendo mitigada pela graça de Deus, mas nunca completamente erradicada enquanto o indivíduo estiver na carne. A vida cristã era, para Calvino, uma luta incessante contra essa “carne” ou concupiscência, que sempre tentaria desviar o crente do caminho da retidão. A santificação era um processo de progressiva mortificação da carne, mas nunca de sua completa aniquilação nesta vida.

Ambos, Lutero e Calvino, enfatizaram que a concupiscência demonstra a incapacidade humana de alcançar a justiça por suas próprias obras e a necessidade exclusiva da graça divina através de Cristo. A persistência da concupiscência no crente reforçava a doutrina da justificação sola fide (somente pela fé) e a ideia de que a salvação não dependia de méritos humanos, mas da misericórdia de Deus. A concupiscência não é apenas uma fraqueza, mas a própria prova de que o homem é um pecador em sua essência, mesmo quando justificado.

Tabela 1: Perspectivas Comparadas sobre Concupiscência

As abordagens protestantes da concupiscência destacaram a seriedade da queda e a profundidade da corrupção humana, enfatizando a total dependência da graça divina para a salvação e a santificação. Elas pintaram um quadro de uma luta incessante contra uma natureza pecaminosa persistente, que moldou a ética e a espiritualidade reformadas. A concupiscência, assim, tornou-se um lembrete vívido da graça irrestrita de Deus e da necessidade contínua de arrependimento e fé.

A concupiscência é inerentemente má ou é a desordem das inclinações que a torna problemática?

A questão de se a concupiscência é inerentemente má ou se sua maldade reside na desordem de inclinações que por si mesmas poderiam ser neutras ou até boas é um ponto de grande debate entre as diferentes escolas de pensamento teológico e filosófico. A visão predominante, especialmente na tradição católica e em algumas vertentes protestantes moderadas, inclina-se para a ideia de que a concupiscência não é um mal substancial em si, mas a desordem que afeta a vontade e os apetites, tornando-os problemáticos. Essa desordem é o que desvia a inclinação natural de seu propósito original e legítimo.

Os apetites ou desejos humanos, como a fome, a sede, o desejo de conhecimento, a atração pelo belo e o desejo sexual, são parte integrante da natureza humana criada por Deus. Em seu estado original, eles seriam perfeitamente ordenados à razão e à vontade, servindo ao bem integral da pessoa. Por exemplo, o desejo de comer é bom e necessário para a sobrevivência; a atração sexual é essencial para a procriação e o vínculo matrimonial. A concupiscência, portanto, não é o desejo em si, mas a tendência desses desejos a se tornarem incontroláveis, excessivos ou direcionados a objetos ilícitos.

Essa desordem é uma consequência do Pecado Original, que introduziu uma ruptura na harmonia entre a razão, a vontade e os apetites. A concupiscência é a “ferida” que resulta dessa ruptura, fazendo com que os apetites inferiores se rebelassem contra a razão e a vontade. O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, afirma que a concupiscência “não é pecado no sentido próprio, mas provém do pecado e inclina ao pecado”. Isso significa que a concupiscência é a inclinação para o pecado, o terreno fértil para ele, mas não o ato pecaminoso em si.

A concupiscência se torna problemática quando a razão e a vontade, enfraquecidas, falham em manter os apetites sob controle, permitindo que eles se tornem excessivos ou direcionados a fins impróprios. Por exemplo, o desejo de possuir bens materiais é natural, mas quando ele se torna uma ganância insaciável que leva à injustiça ou à avareza, manifesta-se a concupiscência desordenada. A malícia não reside no desejo de posse em si, mas na sua intensidade desproporcional e na sua busca egoísta.

A luta contra a concupiscência, então, não é uma luta para erradicar os desejos naturais, mas para reordená-los e purificá-los, de modo que sirvam ao bem e à virtude. É uma questão de temperança, moderação e autodomínio. A virtude não consiste em não sentir desejos, mas em senti-los da maneira certa, no momento certo e para o fim certo, sob a luz da razão e da fé. A concupiscência, em seu aspecto problemático, é a força que constantemente tenta desviar o indivíduo desse caminho de retidão.

Em algumas tradições protestantes, especialmente aquelas mais influenciadas pela teologia de Lutero e Calvino, a concupiscência é vista como um pecado em si mesma, como a própria corrupção da natureza humana, mesmo antes do consentimento da vontade. Para eles, a concupiscência não é apenas uma inclinação desordenada, mas a manifestação da total depravação humana. Essa perspectiva sublinha a gravidade do Pecado Original e a necessidade de uma graça radical para a salvação. No entanto, mesmo nessas visões, a desordem é o cerne do problema, indicando que a concupiscência é uma falha na ordenação original.

Listagem 1: Aspectos da Concupiscência como Desordem

• É uma inclinação e não um ato em si.
• Procede da desobediência da carne ao espírito.
• Resulta da perda da justiça original após a Queda.
• Afeta a subordinação da razão sobre os apetites.
• Não é intrinsecamente má, mas leva ao pecado se não for controlada.
• Exige disciplina e virtude para ser gerenciada.
• É um campo de batalha para o livre-arbítrio.

Portanto, a concupiscência é problemática porque é uma desordem, uma desintegração interna que faz com que os desejos naturais se tornem fontes de tentação e pecado se não forem controlados pela razão e pela vontade, e se não forem orientados pela graça. Ela é a prova de que a natureza humana, embora boa em sua essência, está ferida e enfraquecida, exigindo uma constante vigilância e a busca por uma ordem restaurada.

Quais são as principais manifestações da concupiscência na vida cotidiana?

A concupiscência, em sua essência de desejo desordenado, manifesta-se de diversas formas na vida cotidiana, não se limitando apenas aos apetites sensoriais. Ela permeia as esferas física, emocional, intelectual e espiritual, moldando muitas das nossas escolhas e comportamentos. Uma das manifestações mais imediatamente reconhecíveis é a concupiscência da carne, que abrange os desejos sensuais e corporais. Isso inclui a luxúria, um desejo sexual desordenado que busca o prazer pelo prazer, divorciado de seu propósito procriador e união conjugal, levando a comportamentos como promiscuidade, pornografia ou infidelidade.

Além da luxúria, a concupiscência da carne também se manifesta na glutonaria, o desejo desordenado por comida e bebida, onde o prazer da ingestão se torna um fim em si mesmo, levando ao excesso e à falta de moderação. Isso pode se manifestar em compulsão alimentar, consumo excessivo de álcool ou uma obsessão por dietas e prazeres gastronômicos sem consideração pela saúde ou pela temperança. A preguiça ou acídia, embora menos óbvia como um desejo, é a aversão ao esforço ou ao bem espiritual, uma manifestação da concupiscência que busca o conforto e a inação em detrimento do dever e do crescimento.

Outra forma proeminente é a concupiscência dos olhos, que se refere à cobiça por bens materiais, riquezas e status social. Esta manifestação é a raiz da ganância (avareza), o desejo insaciável de acumular dinheiro e posses, muitas vezes à custa da justiça, da caridade ou da honestidade. Ela pode levar a fraudes, exploração, inveja e uma constante insatisfação com o que se tem. A concupiscência dos olhos também se manifesta na inveja, o ressentimento diante do bem alheio, desejando o que o outro possui e se entristecendo com sua prosperidade, um sentimento corrosivo que destrói a paz interior.

A soberba da vida é a terceira grande categoria de manifestação da concupiscência, focando no desejo desordenado por honra, glória e poder. Esta é a raiz da soberba ou orgulho, que é um amor desordenado por si mesmo, uma exaltação exagerada da própria importância, levando à arrogância, desprezo pelos outros, vaidade e um desejo insaciável por reconhecimento. A soberba pode se manifestar na busca incessante por sucesso profissional sem ética, na arrogância intelectual ou na necessidade constante de ser o centro das atenções, desconsiderando a humildade e o serviço.

A ira, outro dos sete pecados capitais, também pode ser vista como uma manifestação da concupiscência, na medida em que é um desejo desordenado de vingança ou de impor a própria vontade, frequentemente de forma excessiva e destrutiva. Embora a ira possa ter uma função justa em determinadas situações (ira justa), ela se torna concupiscente quando é descontrolada, movida por ressentimento, ódio e desejo de ferir. A manifestação da ira desordenada destrói relacionamentos e a paz interior, sendo um obstáculo para a caridade.

Tabela 2: Exemplos de Manifestações da Concupiscência

A concupiscência, em todas as suas formas, é um impulso egoísta que desvia o indivíduo do amor a Deus e ao próximo. Ela é a força por trás da busca desmedida por prazer, posse e poder, que leva à insatisfação crônica e ao distanciamento dos valores espirituais e morais. O reconhecimento dessas manifestações na vida cotidiana é o primeiro passo para a autodisciplina e a transformação, buscando uma vida de virtude e equilíbrio, onde os desejos são orientados para o bem comum e para a transcendência.

Como a concupiscência se diferencia de um desejo ou inclinação natural?

A distinção entre concupiscência e um desejo ou inclinação natural é fundamental para uma compreensão precisa do conceito. Um desejo natural é um apetite inerente à natureza humana, intrínseco à sua constituição física e psicológica, e que, em si mesmo, é bom e necessário para a preservação do indivíduo e da espécie. Por exemplo, a fome é um desejo natural por alimento, essencial para a sobrevivência; a sede é um desejo natural por água. A atração por um parceiro adequado é um desejo natural para a procriação e o estabelecimento de uma família. Esses desejos são dados por Deus e fazem parte da bondade da criação.

A concupiscência, por outro lado, é um desejo que se tornou desordenado ou excessivo, uma inclinação que se desvia de seu propósito natural e de sua subordinação à razão e à vontade. Não é o desejo em si que é o problema, mas a sua falta de medida, de controle, ou o seu direcionamento para fins impróprios. Em essência, a concupiscência é a “ferida” ou a imperfeição que afeta esses desejos naturais após a Queda, fazendo com que eles se tornem rebeldes à ordem da razão. Ela é a tendência para o egoísmo e para a gratificação imediata, sem considerar as consequências morais ou o bem maior.

Por exemplo, ter fome é um desejo natural. A concupiscência da glutonaria surge quando a fome se torna um apetite insaciável que leva ao excesso, à busca do prazer de comer pelo prazer em si, sem preocupação com a nutrição, a saúde ou a partilha. Da mesma forma, o desejo sexual é natural e bom em seu contexto adequado, mas a concupiscência da luxúria é um desejo sexual desordenado que busca a satisfação egoísta e o prazer dissociado do amor, do compromisso e da dignidade da pessoa. A diferença reside na ordem ou desordem do desejo.

Uma inclinação natural opera em harmonia com a razão e a vontade, direcionando o indivíduo para o que é verdadeiramente bom e necessário para seu florescimento. Quando um desejo natural é regulado pela razão e pela virtude da temperança, ele serve ao bem integral da pessoa. A concupiscência, em contraste, representa uma falha nesse controle e nessa direção. Ela é a manifestação da “lei do pecado” que atua nos membros, fazendo com que o indivíduo se incline para o que é aparente bom (prazer, posse), mas que é prejudicial quando buscado de forma desmedida ou ilícita.

A concupiscência não anula a existência dos desejos naturais, mas os corrompe. Ela os torna mais difíceis de controlar e mais propensos a levar ao pecado. Assim, enquanto a sede leva a beber água para sustentar a vida, a concupiscência pode levar ao alcoolismo. Enquanto o desejo por descanso é natural e necessário, a concupiscência pode se manifestar como preguiça, levando à inatividade e à negligência de deveres. A chave distintiva é a presença da desordem e da ausência de subordinação à razão e à lei moral.

Listagem 2: Concupiscência vs. Desejo Natural

• Desejo Natural:
  • Inerente à natureza humana.
  • Bom em si mesmo.
  • Essencial para a sobrevivência e florescimento.
  • Direcionado por propósito legítimo.
  • Harmoniza-se com a razão.
• Concupiscência:
  • Desvio ou desordem do desejo natural.
  • Não é pecado em si, mas inclina ao pecado.
  • Resultado da ferida do Pecado Original.
  • Busca a satisfação egoísta e desmedida.
  • Rebela-se contra a razão e a vontade.

Essa distinção implica que a tarefa moral não é a de reprimir ou eliminar todos os desejos, o que seria impossível e antinatural, mas a de purificar e ordenar esses desejos. A concupiscência é o desafio, a tentação constante para que o desejo natural se desvie. A virtude, auxiliada pela graça, busca restaurar a harmonia original, permitindo que os desejos sirvam ao bem maior e à glória de Deus, transformando a inclinação desordenada em uma força para o bem.

A concupiscência afeta a liberdade humana e a capacidade de escolha?

A concupiscência, como uma inclinação desordenada, tem um impacto significativo sobre a liberdade humana e a capacidade de escolha, embora essa influência não anule completamente o livre-arbítrio. De acordo com a maioria das tradições teológicas e filosóficas que abordam o conceito, a concupiscência não destrói a liberdade, mas a enfraquece e a torna mais difícil de exercer. Ela atua como um peso, uma força interna que puxa a vontade para o mal ou para o desordenado, tornando a escolha pelo bem um ato mais árduo e meritório.

Antes do Pecado Original, na visão cristã, a liberdade humana era perfeita e a vontade estava em total harmonia com a razão e com a vontade divina. A concupiscência, surgindo como consequência da Queda, introduziu uma desarmonia interna. Agora, a vontade não encontra mais uma subordinação natural dos apetites sensíveis; pelo contrário, ela se vê constantemente desafiada por impulsos que a inclinam para o prazer imediato, a posse egoísta ou a exaltação de si. Essa luta interna é a essência do impacto da concupiscência na liberdade.

A concupiscência não força a vontade a escolher o mal. O ser humano permanece com a capacidade de assentir ou resistir a esses impulsos. O que ela faz é diminuir a facilidade com que a vontade escolhe o bem e aumentar a dificuldade de resistir à tentação. É como um vento forte que empurra um barco: o barco ainda pode navegar contra o vento, mas requer mais esforço e habilidade. Assim, a concupiscência torna a virtude mais custosa e o vício, por vezes, mais atraente ou fácil de ceder. Essa fragilidade da vontade é um dos seus efeitos mais notáveis.

A capacidade de escolha, portanto, não é abolida, mas comprometida em sua pureza e facilidade. A pessoa ainda pode escolher entre o bem e o mal, mas a concupiscência introduz uma forte inclinação para o mal que não existia antes. Essa inclinação é o que torna o processo de tomada de decisão moral um campo de batalha, onde a razão e a fé devem constantemente lutar para direcionar a vontade para o que é justo e virtuoso. O indivíduo precisa de maior vigilância e de auxílio divino para resistir aos impulsos desordenados.

Filosoficamente, a concupiscência pode ser vista como a manifestação de nossos impulsos primários ou instintos que, sem a regulação da razão, podem levar a ações não livres no sentido de serem automáticas ou impulsivas. Quando um indivíduo age puramente por concupiscência, ele está, em certo sentido, sendo “escravo” de seus próprios desejos, em vez de agir a partir de uma escolha racional e deliberada. A verdadeira liberdade, nesse contexto, não é a ausência de limites ou a capacidade de fazer qualquer coisa, mas a capacidade de escolher o bem livremente, alinhando a vontade com a razão e com a lei moral.

Tabela 3: Concupiscência e a Liberdade Humana

A luta contra a concupiscência é, portanto, uma luta pela restauração da plena liberdade. Não se trata de negar os desejos, mas de ordená-los, de modo que a vontade possa agir com maior facilidade e sem impedimentos na busca do bem. Essa restauração é um processo de santificação e aperfeiçoamento moral, que exige constante vigilância, auxílio da graça e prática das virtudes. A concupiscência, ao invés de anular a liberdade, torna-a um campo para o exercício heroico da vontade e da busca pela retidão.

Existem diferentes tipos de concupiscência, como carnal, dos olhos ou da soberba da vida?

Sim, as tradições teológicas, especialmente a cristã, frequentemente categorizam a concupiscência em diferentes tipos para facilitar a compreensão de suas variadas manifestações. A classificação mais conhecida e influente vem da Primeira Epístola de João, capítulo 2, versículo 16, onde se afirma: “Porque tudo o que há no mundo — a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida — não procede do Pai, mas procede do mundo.” Esta tripartição oferece um quadro abrangente para entender as diferentes formas pelas quais o desejo desordenado se manifesta na experiência humana.

A concupiscência da carne (concupiscentia carnis) refere-se aos desejos desordenados relacionados aos prazeres sensoriais e corporais. Isso inclui, mas não se limita, aos apetites sexuais (luxúria), à busca excessiva por comida e bebida (glutonaria) e à aversão ao esforço ou ao trabalho (preguiça). É a inclinação para buscar a satisfação imediata dos sentidos, transformando os prazeres legítimos em fins em si mesmos, sem a devida moderação da razão ou da moral. Essa forma de concupiscência está intrinsecamente ligada à busca do conforto físico e à gratificação instantânea.

A concupiscência dos olhos (concupiscentia oculorum) diz respeito aos desejos desordenados que se originam do que se vê e se cobiça, principalmente em relação a bens materiais, riquezas, propriedades e tudo o que o mundo oferece para ser possuído. Esta categoria abrange a ganância ou avareza, o desejo insaciável por mais posses, poder ou dinheiro, e a inveja, o descontentamento com o que o outro possui e o desejo de ter o mesmo ou mais. É a busca de valor e segurança nas coisas externas, através da acumulação e da comparação social, levando à insatisfação e à injustiça.

A soberba da vida (superbia vitae) é talvez a mais sutil e perigosa das três, pois se refere ao desejo desordenado de autoexaltação, de poder, de reconhecimento e de uma posição social elevada. É o orgulho excessivo, a vaidade, a arrogância, a busca pela glória humana em detrimento da glória de Deus e do bem comum. Esta forma de concupiscência leva o indivíduo a se considerar superior aos outros, a desprezar a autoridade e a buscar o domínio sobre os seus semelhantes. É a raiz de muitas ambições desenfreadas e da incapacidade de aceitar a própria pequenez diante de Deus.

Essas três categorias não são mutuamente exclusivas e frequentemente se interligam na experiência humana. Por exemplo, a busca por um estilo de vida luxuoso (concupiscência da carne) pode ser alimentada pela ganância por dinheiro (concupiscência dos olhos) e pelo desejo de exibir status e poder (soberba da vida). Elas representam as principais frentes de batalha na luta moral e espiritual. A compreensão desses tipos ajuda a identificar as áreas de vulnerabilidade pessoal e a direcionar os esforços para o desenvolvimento de virtudes específicas que se opõem a essas desordens.

Tabela 4: Tipos de Concupiscência e Seus Atributos

Reconhecer esses tipos de concupiscência é crucial para o autodomínio e o crescimento espiritual. Eles representam as principais áreas onde a natureza humana, ferida pelo Pecado Original, tende a se desviar do caminho da virtude e da subordinação a Deus. A luta contra eles requer a prática de virtudes opostas, como a temperança, a generosidade, a humildade e a caridade, buscando reordenar os desejos para o verdadeiro bem.

Qual o papel da concupiscência na doutrina cristã sobre o pecado?

Na doutrina cristã, a concupiscência desempenha um papel central e complexo na compreensão do pecado, servindo como a principal explicação para a persistência do mal e da inclinação para o erro na natureza humana, mesmo após o batismo ou a conversão. Ela é vista como a consequência mais visível e palpável do Pecado Original, que não apenas introduziu o pecado no mundo, mas também corrompeu a harmonia interna da pessoa humana, afetando a relação entre a razão, a vontade e os apetites. A concupiscência é, nesse sentido, o “solo” onde o pecado pode germinar.

A concupiscência não é considerada pecado em si mesma por muitas tradições, notavelmente a católica, mas sim a tendência ou inclinação para o pecado. É a “lei do pecado” ou a “lei da carne” que reside em nós, contrapondo-se à “lei do espírito”, conforme descrito por São Paulo em Romanos 7. Essa inclinação é o que torna a vida moral uma luta contínua, pois mesmo quando a vontade deseja fazer o bem, ela é constantemente assaltada por desejos desordenados que a puxam para o mal. A concupiscência explica por que, mesmo conhecendo o bem, as pessoas frequentemente escolhem o mal.

Para a teologia, a concupiscência demonstra a profundidade da ferida causada pelo Pecado Original. Antes da queda, a natureza humana estava em um estado de justiça original, com perfeita integridade e subordinação dos apetites à razão e a Deus. Com o pecado, essa harmonia foi quebrada, e a concupiscência é a manifestação dessa desintegração. Ela é a prova de que a humanidade perdeu sua retidão e santidade originais, tornando-se suscetível à tentação e ao pecado.

A concupiscência é também o que nos torna necessitados da graça divina e da redenção oferecida por Jesus Cristo. Sem a graça, a vontade humana, enfraquecida e constantemente assediada por esses desejos desordenados, seria incapaz de resistir ao pecado de forma consistente e eficaz. A graça não elimina a concupiscência nesta vida, mas capacita o indivíduo a lutar contra ela, a não consentir aos seus impulsos e a crescer em virtude. Ela transforma a concupiscência de uma força dominadora em um campo de exercício para a virtude e o mérito.

A doutrina do pecado original e da concupiscência serve para explicar por que o pecado é uma realidade universal, presente em todos os seres humanos, independentemente de sua educação ou ambiente. Não é apenas uma questão de má escolha individual, mas de uma predisposição inata para o mal que afeta a natureza humana como um todo. Isso sublinha a seriedade do pecado e a necessidade de uma solução transcendente para o problema do mal. A concupiscência é o motor para a humildade e o reconhecimento da dependência de Deus.

Listagem 3: Concupiscência e sua Relação com o Pecado

• É uma consequência direta do Pecado Original.
• Serve como uma inclinação ou predisposição para o pecado.
• Explica a universalidade e persistência do pecado na humanidade.
• Enfraquece a vontade, tornando a escolha do bem mais difícil.
• Não é pecado em si (na maioria das visões), mas a “matéria” da tentação.
• Permanece no batizado como um campo de batalha para a graça.
• Torna o ser humano dependente da graça divina para a santificação.

A compreensão da concupiscência na doutrina cristã é vital para a espiritualidade, pois ela molda a visão sobre a luta contra o pecado, a importância da virtude, a necessidade da graça e a centralidade da redenção em Cristo. Ela não é um fator de desespero, mas um convite à vigilância e ao crescimento contínuo em santidade, reconhecendo a fragilidade humana e a onipotência da graça divina.

Como a Igreja Católica atual compreende e ensina sobre a concupiscência?

A Igreja Católica, em sua doutrina atual, conforme expresso principalmente no Catecismo da Igreja Católica (CIC), mantém uma compreensão da concupiscência que se baseia nas tradições agostiniana e tomista, sintetizando suas principais ideias. O CIC define a concupiscência como a inclinação para o pecado, um movimento desordenado dos apetites sensíveis que permanece no homem mesmo após o batismo. Ela não é considerada pecado em si mesma, mas é uma consequência do Pecado Original e um terreno fértil para o pecado.

O Catecismo reafirma que, pelo Pecado Original, Adão e Eva perderam a “santidade e justiça originais” e, como resultado, a natureza humana foi ferida. Essa ferida se manifesta na concupiscência, que é a “rebelião da carne contra o espírito”. Embora o batismo remova a culpa do Pecado Original e confira a graça santificante, a concupiscência permanece. Esta permanência é um “combate” ou um “campo de batalha” constante para o cristão, uma prova de sua fé e um meio de crescimento em virtude.

A Igreja ensina que a concupiscência, por si só, não é um pecado se a vontade humana não lhe der consentimento. É a cedência voluntária a esses desejos desordenados que constitui o pecado. Essa distinção é crucial, pois ela salvaguarda a liberdade da vontade e a responsabilidade moral do indivíduo. A tentação, que surge da concupiscência, não é pecado; o pecado ocorre quando a tentação é acolhida e o ato mau é consentido. Assim, a concupiscência é a “matéria da tentação”, a “inclinação para o mal”, mas não o mal em si.

O Catecismo também usa a distinção de São João sobre os três tipos de concupiscência: a concupiscência da carne (desejos sexuais desordenados, glutonaria, preguiça), a concupiscência dos olhos (cobiça por bens materiais e riquezas) e a soberba da vida (desejo de poder e glória próprios). Essas manifestações são consideradas as principais áreas onde a concupiscência atua, puxando o ser humano para longe de Deus e do amor ao próximo. A Igreja enfatiza a necessidade de lutar contra essas tendências através da mortificação e da virtude.

Para combater a concupiscência, a Igreja Católica propõe um caminho de disciplina ascética, a prática das virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza, temperança) e teologais (fé, esperança, caridade), e a recepção dos sacramentos, especialmente a Eucaristia e a Reconciliação. A graça divina é vista como essencial para fortalecer a vontade e permitir que o cristão resista às tentações da concupiscência. O crescimento em santidade é um processo de constante autodomínio e purificação dos desejos.

Tabela 5: Ensinamentos da Igreja Católica sobre Concupiscência

A visão católica da concupiscência é um convite à vigilância e à busca da santidade. Ela reconhece a fragilidade humana, mas também a capacidade de, com a ajuda da graça, dominar os impulsos desordenados e crescer em direção à plena comunhão com Deus. A concupiscência não é uma condenação, mas uma condição que desafia o cristão a viver uma vida de maior autodisciplina e dependência da misericórdia divina.

A concupiscência pode ser vista sob uma perspectiva psicológica moderna?

Embora a concupiscência seja um termo com fortes conotações teológicas e filosóficas, muitos de seus conceitos subjacentes podem ser explorados e compreendidos através de lentes da psicologia moderna, mesmo que a terminologia exata não seja empregada. As inclinações desordenadas, os impulsos incontroláveis e a luta interna entre o desejo e a razão são temas recorrentes na psicanálise, na psicologia humanista e na psicologia cognitiva. A concupiscência pode ser interpretada como a manifestação de instintos primários ou necessidades que, quando não regulados, levam a comportamentos disfuncionais ou destrutivos.

Uma das perspectivas mais evidentes é a da psicanálise de Sigmund Freud. Embora Freud não usasse o termo concupiscência, seu conceito de “id” e do “princípio do prazer” ressoa fortemente com a ideia de desejos desordenados e impulsos primários. O id é a parte mais primitiva da personalidade, totalmente inconsciente, que busca a satisfação imediata de todas as necessidades e desejos instintivos, sem consideração pela realidade ou pela moralidade. Essa busca incessante e irracional por gratificação imediata pode ser vista como a contraparte psicológica da concupiscência, especialmente em sua manifestação carnal e na busca de prazeres.

O “superego” em Freud, que representa a internalização das normas morais e sociais, e o “ego”, que busca mediar entre as demandas do id, do superego e da realidade, refletem a luta interna para controlar esses impulsos primários. A incapacidade do ego de regular o id leva a neuroses, vícios e comportamentos autodestrutivos, o que é análogo ao problema da concupiscência descontrolada que leva ao pecado e à desordem interior. A “libido” freudiana, embora focada na energia sexual, também se estende a outras formas de impulso vital, assemelhando-se à abrangência do conceito de concupiscência.

Outra abordagem interessante vem da psicologia evolutiva, que postula que muitos de nossos desejos e impulsos são remanescentes de estratégias adaptativas ancestrais. O desejo de acumular recursos, de buscar status social, de reproduzir-se ou de evitar dor são instintos que foram cruciais para a sobrevivência e a propagação da espécie. No entanto, em um ambiente moderno, esses instintos podem se manifestar de formas desadaptativas ou excessivas, levando à ganância, à arrogância, à luxúria desenfreada ou à busca incessante por prazer, sem um propósito real. A concupiscência, nesse sentido, seria a desregulação desses imperativos biológicos.

A psicologia comportamental e cognitiva também oferecem insights. Os padrões de pensamento disfuncionais, as crenças irracionais e os hábitos negativos que levam a comportamentos indesejados podem ser vistos como manifestações de uma mente que não está em harmonia com a razão e o bem-estar a longo prazo. A concupiscência, sob essa ótica, seria a tendência a formar e manter esses padrões que priorizam a gratificação imediata em detrimento da saúde mental e espiritual. A terapia cognitivo-comportamental (TCC), por exemplo, visa identificar e modificar esses padrões desordenados.

Listagem 4: Perspectivas Psicológicas da Concupiscência

• Freudiana: Impulsos do Id (prazer) não controlados pelo Ego ou Superego.
• Psicologia Evolutiva: Instintos adaptativos desregulados em ambientes modernos.
• Comportamental/Cognitiva: Padrões de pensamento disfuncionais e hábitos negativos.
• Neurociência: Desequilíbrios nos sistemas de recompensa do cérebro (dopamina).
• Humanista: Desvios do “self” verdadeiro em busca de validação ou gratificação externa.

Mesmo que a psicologia moderna não use o vocabulário da concupiscência, ela estuda os mesmos fenômenos de desejos intensos, impulsos, vícios e a luta pelo autodomínio. A concupiscência, nesse contexto, pode ser vista como o termo que encapsula a predisposição humana para a desordem interna e a busca egoísta de gratificação, que a psicologia tenta explicar através de mecanismos biológicos, desenvolvimentais e sociais. É a tentativa de compreender por que os seres humanos frequentemente agem de formas que não são do seu melhor interesse, demonstrando uma luta contínua para alinhar a vontade com a razão.

De que maneira a concupiscência se relaciona com as “Sete Paixões Capitais” ou “Sete Pecados Capitais”?

A relação entre concupiscência e os “Sete Pecados Capitais” (ou Paixões Capitais) é intrínseca e fundamental para a compreensão de ambos os conceitos no pensamento cristão. A concupiscência é a raiz profunda, a tendência desordenada da natureza humana, enquanto os Sete Pecados Capitais são as manifestações específicas e mais proeminentes dessa desordem. Eles são como as “cabeças” ou “fontes” de onde jorram outros pecados, sendo eles próprios as formas mais graves de desejos desordenados ou aversões que, quando não controladas, conduzem a uma miríade de transgressões.

Os Sete Pecados Capitais são tradicionalmente listados como: soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça (acídia). Cada um deles pode ser visto como uma forma particular de concupiscência, uma inclinação desordenada que se manifesta de uma maneira específica. A concupiscência é a causa subjacente, o impulso interno universal que, ao se desviar, se expressa em uma dessas categorias capitais. Assim, a concupiscência não é apenas um dos pecados capitais, mas a força motriz por trás de todos eles.

A soberba, por exemplo, é a concupiscência da autoexaltação, o desejo desordenado de ser superior, de dominar, de ser reconhecido acima de tudo, o que São João chamou de “soberba da vida”. A avareza é a concupiscência dos bens materiais, o desejo insaciável de possuir riquezas e objetos, que se enquadra na “concupiscência dos olhos”. A luxúria é a concupiscência da carne por excelência, o desejo sexual desordenado que busca o prazer em si mesmo.

A gula é a concupiscência da carne relacionada ao apetite por comida e bebida, um excesso no prazer sensorial da ingestão. A inveja é a concupiscência dos olhos que se manifesta no desejo pelo que o outro tem e no ressentimento pela sua felicidade ou sucesso. A ira é o desejo desordenado de vingança ou de impor a própria vontade, frequentemente de forma explosiva ou destrutiva. E a preguiça (acídia) é a concupiscência pelo conforto e pela inação, uma aversão ao esforço espiritual e moral, que também se encaixa na “concupiscência da carne” ou até mesmo na soberba, pela autoindulgência.

Assim, os Pecados Capitais são os canais primários pelos quais a concupiscência se manifesta e se enraíza na alma humana. Eles são os pontos fracos pelos quais a inclinação desordenada ganha força e leva a outros pecados. Combater um pecado capital é combater uma manifestação particular da concupiscência. A vida espiritual é, em grande parte, uma luta para submeter essas paixões ou desejos capitais à razão e à graça.

Tabela 6: Concupiscência e os Sete Pecados Capitais

A relação entre concupiscência e os Sete Pecados Capitais é de causa e efeito: a concupiscência é a causa subjacente, a predisposição inata para o mal, e os Pecados Capitais são as expressões concretas e dominantes dessa predisposição em áreas chave da vida humana. A compreensão dessa dinâmica é essencial para a formação da consciência e para a prática da ascese e da virtude.

É possível superar ou controlar a concupiscência, e como?

A questão da superação ou controle da concupiscência é um ponto central na teologia e na espiritualidade, com diferentes tradições oferecendo perspectivas variadas. Embora a concupiscência, como uma inclinação desordenada herdada pelo Pecado Original, não possa ser completamente erradicada nesta vida (na maioria das visões cristãs), ela pode ser controlada e dominada pela vontade, com o auxílio da graça divina. A vida do cristão é vista como uma luta contínua, um campo de batalha onde a concupiscência constantemente tenta desviar a vontade para o pecado.

O primeiro passo para controlar a concupiscência é o reconhecimento de sua presença e de sua natureza como inclinação desordenada. A humildade em aceitar essa fraqueza inata é fundamental. Em seguida, a vigilância constante sobre os pensamentos e desejos é crucial. Isso envolve a consciência de que a concupiscência não é pecado em si, mas a “matéria” da tentação, e que a luta é contra o consentimento a esses impulsos. A atenção plena e a reflexão sobre as próprias motivações são ferramentas poderosas.

A disciplina ascética desempenha um papel vital. Isso não significa aversão ao corpo ou aos prazeres, mas a moderação e o autodomínio sobre os apetites. Práticas como o jejum, a abstinência, a mortificação dos sentidos (como controlar o que se vê, ouve e lê), e a temperança em todas as coisas, são meios para fortalecer a vontade e diminuir a força dos desejos desordenados. O objetivo é reordenar os apetites para que sirvam à razão e ao bem, em vez de dominá-la. É um processo de purificação e reeducação dos desejos.

A prática das virtudes é o antídoto mais eficaz contra a concupiscência. Cada tipo de concupiscência tem sua virtude oposta que deve ser cultivada. Contra a luxúria, a castidade; contra a gula, a temperança; contra a avareza, a generosidade; contra a soberba, a humildade; contra a inveja, a caridade fraterna; contra a ira, a paciência; contra a preguiça, a diligência. A virtude fortalece a vontade para o bem, tornando mais fácil resistir aos impulsos desordenados e agir de forma reta. É um exercício contínuo do caráter.

A graça divina é indispensável nessa luta. Para as tradições cristãs, a força humana por si só não é suficiente para dominar a concupiscência de forma consistente. A graça, obtida através da oração, dos sacramentos (especialmente a Reconciliação e a Eucaristia), e da fé em Cristo, fortalece a vontade, ilumina a razão e santifica a alma. É a graça que permite ao indivíduo perseverar na luta, mesmo diante de falhas e dificuldades. A concupiscência é o que nos torna dependentes da misericórdia e do auxílio de Deus.

A fuga das ocasiões de pecado é uma estratégia prática importante. Evitar ambientes, companhias ou situações que alimentam os desejos desordenados é um ato de prudência que facilita a luta. Isso pode envolver mudanças de estilo de vida, limitar o acesso a certos tipos de mídia ou afastar-se de relacionamentos que levam ao mal. É um reconhecimento de que, embora a luta seja interna, o ambiente externo tem uma influência considerável sobre a força da tentação.

Listagem 5: Estratégias para Controlar a Concupiscência

• Reconhecimento: Aceitar a presença da concupiscência como inclinação, não como pecado inerente.
• Vigilância: Monitorar pensamentos e desejos, evitando o consentimento.
• Ascese: Praticar jejum, mortificação e temperança para fortalecer a vontade.
• Virtudes: Cultivar as virtudes opostas aos vícios gerados pela concupiscência.
• Graça: Buscar o auxílio divino através da oração e dos sacramentos.
• Fuga de Ocasiões: Evitar ambientes e situações que aumentam a tentação.
• Oração: Pedir força e discernimento a Deus para a batalha espiritual.

Controlar a concupiscência não significa eliminá-la, mas sim não permitir que ela domine a vontade e leve ao pecado. É um processo contínuo de crescimento e santificação, onde o indivíduo aprende a direcionar seus desejos para o bem, encontrando a verdadeira liberdade na obediência a Deus e na prática da virtude. A vitória sobre a concupiscência é um sinal de maturidade espiritual e de uma vida alinhada com propósitos mais elevados.

A concupiscência é uma herança universal da humanidade?

Sim, a concupiscência é amplamente compreendida na tradição cristã como uma herança universal da humanidade, um traço inerente à natureza humana decaída que afeta a todos desde o nascimento. Essa universalidade deriva da doutrina do Pecado Original, que postula que a transgressão de Adão e Eva teve consequências para toda a sua descendência. A concupiscência é vista como uma das principais sequelas dessa queda, transmitida de geração em geração, não como um pecado pessoal cometido por cada indivíduo, mas como uma condição da natureza.

A universalidade da concupiscência significa que ela afeta a todos os seres humanos, independentemente de sua cultura, religião, educação ou virtudes pessoais. Ninguém está imune à sua influência, embora a forma como ela se manifesta e a intensidade de sua luta possam variar de pessoa para pessoa. Essa predisposição para o desejo desordenado é a explicação para a universalidade do pecado no mundo: se todos pecam, é porque todos possuem essa inclinação para o mal, essa desordem interna que os puxa para longe de Deus e do bem.

Essa doutrina contrasta com visões que poderiam atribuir o pecado apenas a fatores sociais, ambientais ou a escolhas individuais isoladas. A concupiscência, como herança, aponta para uma fragilidade inata na natureza humana que antecede qualquer escolha pessoal. Ela é a “ferida” que acompanha o ser humano desde o nascimento, a lei do pecado que reside em seus membros, tornando a vida moral um desafio contínuo. Essa condição não é escolhida, mas herdada, e é a base para a necessidade universal de redenção.

Mesmo aqueles que buscam viver uma vida virtuosa e santa, como os santos e místicos, reconhecem a persistência da concupiscência em suas próprias vidas. Para eles, a luta contra esses desejos desordenados é uma parte fundamental de sua jornada espiritual e um sinal de sua humildade e dependência de Deus. A concupiscência não é eliminada pelo batismo, mas sua culpa é removida, e a inclinação para o pecado se torna um campo para o exercício da graça e da virtude.

A presença da concupiscência em todos os seres humanos também reforça a ideia de que a solução para o problema do pecado não pode ser meramente humana. Se a condição é universal e inerente, a solução deve ser igualmente universal e transcendente, vindo de uma fonte fora da natureza humana, ou seja, de Deus. Isso justifica a centralidade da figura de Jesus Cristo e da graça na teologia cristã como a única forma de superar os efeitos do pecado e da concupiscência.

Em diversas filosofias e psicologias, embora não usem o termo “concupiscência”, há o reconhecimento de uma tendência humana universal a agir de forma egoísta, irracional ou a ceder a impulsos que não são do seu melhor interesse. Por exemplo, a psicologia evolutiva falaria de “imperativos biológicos” que podem ser desadaptativos, e a psicanálise de “pulsões” ou “instintos” que exigem regulação. Essas abordagens, de certa forma, corroboram a observação de uma tendência inerente ao desvio.

A concupiscência, como herança universal, é um lembrete constante da necessidade de vigilância, oração e dependência da graça divina. Ela não é um motivo para o desespero, mas para a humildade e a busca incessante por uma vida em conformidade com a vontade de Deus. Ela une toda a humanidade em uma condição comum de fragilidade e na necessidade compartilhada de redenção e auxílio espiritual, apontando para a solidariedade na condição humana e a necessidade de uma solução divina.

Qual a relação entre concupiscência e tentação?

A relação entre concupiscência e tentação é de causa e efeito, onde a concupiscência serve como a fonte interna e a predisposição para a tentação. A tentação, por sua vez, é o convite ou o estímulo externo ou interno para ceder aos desejos desordenados que a concupiscência já inclina a pessoa. A concupiscência é o “combustível” ou o “terreno fértil” sobre o qual a semente da tentação pode ser lançada e, se consentida, germinar no pecado. Sem a concupiscência, a tentação teria pouco ou nenhum poder sobre a vontade humana.

De acordo com o Novo Testamento, particularmente na Epístola de Tiago 1:14-15, está escrito: “Cada um é tentado, quando, levado e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.” Essa passagem ilustra claramente a progressão: a concupiscência é a isca interna, o desejo desordenado que atrai; a tentação é o processo de ser “levado e engodado” por essa isca; e o pecado é o ato resultante do consentimento a esse processo.

A concupiscência não é o mesmo que tentação. A concupiscência é a inclinação, o desejo desordenado que reside na natureza humana. Ela está presente mesmo quando não há uma tentação específica agindo. A tentação, por outro lado, é um estímulo externo ou interno que apela a essa inclinação desordenada, convidando a pessoa a agir de uma maneira que é contrária à lei moral ou à vontade de Deus. Por exemplo, a concupiscência da gula é a inclinação para comer em excesso; a visão de um bolo delicioso é a tentação.

É importante ressaltar que a tentação, por si só, não é pecado. Jesus Cristo foi tentado no deserto, mas não pecou. A tentação é uma prova, uma oportunidade para a pessoa exercer sua liberdade e escolher entre o bem e o mal. A luta contra a tentação é a luta para não consentir aos impulsos da concupiscência. Se a vontade resiste à tentação, ela cresce em virtude e em força espiritual, fortalecendo seu autodomínio e sua fé.

A concupiscência torna a tentação mais forte e mais difícil de resistir, pois já existe uma predisposição interna para ceder. Sem a concupiscência, a tentação seria, em grande parte, ineficaz. Essa relação explica por que os seres humanos, apesar de seus melhores esforços, frequentemente caem em pecado. Não é apenas a força do estímulo externo, mas a vulnerabilidade interna causada pela concupiscência que torna a tentação tão poderosa.

Essa dinâmica sublinha a importância da vigilância e da oração na vida espiritual. A concupiscência está sempre presente, e a tentação pode surgir a qualquer momento. Portanto, é necessário estar constantemente alerta aos pensamentos e desejos, e buscar a graça divina para resistir aos apelos do mal. A concupiscência é o adversário interior, a tentação é o ataque externo, e a vontade, com a ajuda de Deus, é o defensor.

Listagem 6: Concupiscência e Tentação

• Concupiscência: A inclinação desordenada, a predisposição interna para o mal.
• Temptation: O estímulo externo ou interno que apela à concupiscência.
• A concupiscência é o terreno; a tentação é a semente.
• A tentação, em si, não é pecado; o pecado é o consentimento.
• A concupiscência torna a tentação mais forte e difícil de resistir.
• A luta espiritual envolve resistir à tentação e dominar a concupiscência.

Compreender a relação entre concupiscência e tentação é essencial para a vida moral e espiritual. Ela nos ajuda a reconhecer a fonte de nossas lutas internas e a entender que, embora a inclinação para o mal persista, a liberdade humana, fortalecida pela graça, pode escolher resistir e, assim, crescer em santidade. A concupiscência é um lembrete de que a vigilância e a busca por uma vida virtuosa são um caminho constante de superação.

Como a busca pela virtude se opõe à desordem da concupiscência?

A busca pela virtude é a resposta direta e fundamental à desordem da concupiscência, representando o caminho para restaurar a harmonia interior e direcionar os desejos humanos para o bem. Onde a concupiscência é a inclinação para o excesso, o egoísmo e a desordem, a virtude é a disposição habitual e firme para fazer o bem, para agir de acordo com a razão e a lei moral. As virtudes atuam como os antídotos específicos para as diversas manifestações da concupiscência, fortalecendo a vontade e purificando os apetites.

Cada vício ou manifestação da concupiscência tem uma virtude oposta que serve como seu contraponto e meio de superação. Por exemplo, a temperança é a virtude que se opõe diretamente à concupiscência da carne, controlando os desejos por prazeres sensoriais, como a gula e a luxúria. Ela ensina a moderação no comer, no beber e no uso da sexualidade, garantindo que esses desejos sejam usados de forma ordenada e para o bem da pessoa e da sociedade. A temperança é a pedra angular do autodomínio.

A generosidade ou liberalidade se opõe à avareza, a concupiscência dos olhos que busca acumular bens materiais. Ela direciona a pessoa a usar suas posses para o bem comum, para a caridade e para a partilha, em vez de se apegar a elas egoisticamente. A humildade é a virtude que combate a soberba, a concupiscência da vida que busca a autoexaltação e o poder. A humildade reconhece a própria dependência de Deus e o valor dos outros, promovendo o serviço e a modéstia.

A paciência e a mansidão opõem-se à ira, uma manifestação da concupiscência que se traduz em um desejo desordenado de vingança ou de controle. Elas ensinam a suportar as dificuldades e as ofensas com serenidade, sem ceder à fúria destrutiva. A caridade fraterna, o amor ao próximo, é o remédio para a inveja, que é a tristeza pelo bem alheio. A caridade ensina a alegrar-se com o sucesso dos outros e a desejar o bem para todos.

A prática da virtude não consiste apenas em reprimir os desejos desordenados, mas em reordená-los e direcioná-los para um propósito maior. É um processo de transformação interior, onde a vontade é treinada para amar o bem e para se deleitar na retidão. À medida que as virtudes são cultivadas, a luta contra a concupiscência se torna mais fácil, e a pessoa experimenta uma maior liberdade interior e paz. A virtude não anula o desejo, mas o eleva e o purifica.

O caminho da virtude, auxiliado pela graça divina, é o caminho da santificação. É um processo contínuo de crescimento onde a pessoa se torna cada vez mais semelhante a Cristo, que é o modelo de virtude perfeita e de total domínio sobre a concupiscência. A vida virtuosa é uma resposta ativa e consciente à inclinação para o mal, buscando alinhar cada pensamento e ação com a vontade de Deus.

Tabela 7: Concupiscência e Virtudes Opostas

A busca pela virtude é, portanto, a estratégia mais eficaz para se opor à desordem da concupiscência, levando a uma vida de maior liberdade, paz e realização. É um testemunho da capacidade humana de, com a ajuda divina, transcender suas inclinações mais baixas e alcançar um estado de maior integridade moral e espiritual.

A concupiscência tem alguma função ou impacto positivo, ainda que indireto?

A ideia de que a concupiscência possa ter um impacto positivo, mesmo que indireto, é uma nuance complexa na teologia e filosofia moral. Embora a concupiscência seja fundamentalmente vista como uma desordem e uma inclinação para o mal, sua persistência na vida do indivíduo pode, ironicamente, servir a propósitos que levam ao crescimento espiritual e moral. Não que a concupiscência seja boa em si, mas a sua presença e a luta que ela impõe podem gerar frutos positivos naqueles que a enfrentam com retidão e fé.

Um dos impactos indiretos mais significativos da concupiscência é o estímulo à humildade. Ao experimentar a constante inclinação para o pecado e a fraqueza em resistir a certas tentações, o indivíduo é lembrado de sua própria fragilidade e da sua dependência da graça divina. Isso evita a autojustiça e o orgulho, cultivando um espírito de humildade e reconhecimento de que qualquer bem realizado é fruto da cooperação com Deus e não apenas do esforço pessoal. A concupiscência, portanto, pode ser uma professora da humildade.

A concupiscência também atua como um catalisador para o exercício da virtude e o crescimento na santidade. Se não houvesse inclinação para o mal, a prática da virtude seria muito mais fácil e talvez menos meritória. A luta contra os desejos desordenados exige um esforço constante da vontade, paciência, autodomínio e perseverança. Cada vitória sobre a concupiscência fortalece o caráter moral e a liberdade interior, tornando a pessoa mais resiliente e virtuosa. É no “campo de batalha” da concupiscência que se forja o caráter heroico.

Além disso, a presença da concupiscência pode fomentar a empatia e a caridade para com os outros que também lutam contra suas próprias inclinações. Ao reconhecer sua própria vulnerabilidade, a pessoa tende a ser mais compreensiva e menos julgadora em relação aos pecados e fraquezas alheias. Isso pode levar a uma maior solidariedade humana e a um desejo mais profundo de ajudar os outros em sua jornada espiritual, promovendo a compaixão e o perdão.

A concupiscência também serve como um constante lembrete da necessidade de vigilância e oração. Ela impede que a pessoa caia na complacência espiritual e a mantém em um estado de alerta para as tentações. Essa vigilância contínua é essencial para a manutenção de uma vida espiritual saudável e para evitar quedas mais graves. Ela nos mantém próximos de Deus, conscientes de nossa necessidade de Sua ajuda e misericórdia em cada momento.

Ainda que a concupiscência não seja um bem em si, ela faz parte da condição humana decaída e, quando gerenciada através da graça e da virtude, pode ser a ocasião para um maior mérito e crescimento. É a prova de fogo que refina o ouro da fé e da caridade. Essa perspectiva não nega a seriedade da concupiscência como uma fonte de pecado, mas reconhece que Deus pode tirar um bem maior mesmo das nossas fraquezas e limitações. A concupiscência, assim, pode indiretamente impulsionar o indivíduo a uma maior busca por Deus.

Bibliografia

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