Devir: o que é, significado e exemplos

O que é o Devir em sua essência mais profunda?

O conceito de Devir, em sua tessitura mais fundamental, remete à ideia incessante de transformação, de um fluxo contínuo onde nada permanece fixo ou estático. Não se trata de uma simples mudança superficial, mas de uma alteração ontológica profunda que afeta a própria constituição do ser. É a negação da imutabilidade, a afirmação de que a realidade é um rio que nunca se atravessa duas vezes da mesma forma, ecoando a famosa máxima de Heráclito de Éfeso, um dos seus primeiros e mais vigorosos defensores.

Nesta perspectiva, o Devir não é um estado, mas um processo perpétuo, uma dinâmica que desconcerta a lógica aristotélica da substância e da identidade. Tudo o que existe está em constante vir-a-ser, emergindo e dissolvendo-se em uma dança cósmica de forças e potências. A própria noção de “ser” como algo fixo e duradouro é posta em xeque, revelando-se mais como um instantâneo ilusório dentro de um movimento ininterrupto. A vida, o pensamento, a matéria – tudo é atravessado por essa impiedosa e criativa fluidez.

Esta fluidez radical implica que qualquer tentativa de aprisionar a realidade em categorias rígidas ou definições imutáveis está fadada ao fracasso. O Devir é a força subjacente que impulsiona a existência, tornando cada momento único e irrepetível. Não há repetição idêntica, apenas reiteração de diferenças, como diria mais tarde Gilles Deleuze. O mundo se desdobra em uma miríade de acontecimentos que se conectam e se desconectam, criando novas configurações a cada instante que passa.

A percepção do Devir exige uma nova forma de pensar, que não se baseie na identidade ou na permanência, mas na multiplicidade e na singularidade do transitório. É uma filosofia que celebra o efêmero, o transitório e o potencial de cada emergência. A verdade, se é que existe, não reside em algo fixo e eterno, mas na própria processualidade do real. Essa abertura ao fluxo permite uma compreensão mais orgânica e menos dogmática da vida e de seus múltiplos sentidos.

No cerne do Devir, encontramos a tensão dinâmica entre opostos – vida e morte, criação e destruição, luz e sombra – que não se anulam, mas se complementam e se transformam um no outro. Essa dialética incessante é o que gera a novidade e a vitalidade do mundo. Não há um fim para esse movimento, apenas a contínua metamorfose que define a existência de tudo que é. A realidade é, fundamentalmente, um teatro de potências que se atualizam em um fluxo sem fim.

Reconhecer o Devir significa abraçar a incerteza como condição intrínseca da existência. Não se busca a estabilidade, mas a capacidade de navegar pelas correntes da mudança. Cada instante é uma oportunidade para novas conexões, novos desdobramentos, novas formas de ser e estar no mundo. O Devir é, em última análise, a celebração da vida em sua expressão mais vibrante e imprevisível, convidando-nos a abandonar a rigidez e a nos abrirmos para a torrente criativa da realidade.

A compreensão profunda do Devir nos leva a questionar não apenas o que as coisas são, mas também o que elas estão se tornando, reconhecendo a impermanência como a única constante. O próprio ato de conhecer é um Devir, onde o sujeito e o objeto de conhecimento estão em um diálogo mutável e interativo. Assim, o Devir não é apenas um conceito filosófico, mas uma chave para desvendar a experiência multifacetada e pulsante da própria vida.

Qual a diferença entre Ser e Devir?

A distinção entre Ser e Devir constitui um dos debates filosóficos mais antigos e fundamentais, polarizando pensadores por milênios. Enquanto o Ser, na tradição parmenídica, é concebido como algo imutável, eterno, uno e indivisível, o Devir, conforme articulado por Heráclito, representa a fluidez, a multiplicidade e a constante transformação. O Ser é a estabilidade, a essência fixa; o Devir é o fluxo, a mudança incessante que constitui a própria realidade. Este antagonismo inicial moldou grande parte da metafísica ocidental.

Para Parmênides, o Ser é perfeito e completo em si mesmo, não podendo surgir do nada nem se dissolver no nada, pois isso implicaria a existência do não-ser, o que é logicamente impensável. Desse modo, qualquer mudança, qualquer movimento ou vir-a-ser, seria uma mera ilusão dos sentidos, uma aparência que obscurece a verdadeira realidade do Ser estático. Sua filosofia defende uma realidade imóvel e atemporal, acessível apenas pela razão pura, que transcende as percepções enganosas do mundo fenomênico.

Em contraposição, Heráclito afirmava que “tudo flui” (panta rhei), e que a realidade é um rio de incessantes transformações. Para ele, a própria essência das coisas reside em seu constante vir-a-ser, na tensão e na luta dos opostos que geram o movimento. O fogo, símbolo central em sua filosofia, representa essa dinâmica de criação e destruição, onde tudo está em um processo de devorar e ser devorado, sem nunca alcançar um estado de repouso definitivo. A mudança não é acidental, mas intrínseca à existência.

A tabela a seguir ilustra algumas das principais dicotomias entre Ser e Devir, conforme suas formulações clássicas:

A tensão entre esses dois polos – a busca pela permanência do Ser e a aceitação da inevitabilidade do Devir – perpassa toda a história da filosofia. Platão, por exemplo, tentou conciliar essa dicotomia com sua teoria das Formas (Ideias), propondo um mundo inteligível de essências eternas (o Ser) e um mundo sensível de aparências mutáveis (o Devir). Sua solução, embora influente, ainda mantinha uma hierarquia, priorizando a estabilidade do Ser sobre a fluidez do Devir, relegando este último a uma esfera de menor realidade.

Pensadores posteriores, como Hegel e Nietzsche, resgataram e reconfiguraram o conceito de Devir, conferindo-lhe uma centralidade renovada. Para Hegel, o Devir é o motor dialético da realidade, onde tese, antítese e síntese impulsionam o Espírito Absoluto em um processo de autoconhecimento contínuo. Nietzsche, por sua vez, rejeitou qualquer fundamento estável, afirmando o Devir como a essência da “vontade de potência”, uma força criadora e destrutiva que constitui a vida mesma, sem objetivo final ou substância fixa.

Compreender a diferença entre Ser e Devir é crucial para entender não apenas a metafísica, mas também a epistemologia e a ética. Se a realidade é fundamentalmente Ser, o conhecimento busca verdades universais e eternas, e a moralidade se ancora em princípios imutáveis. Se a realidade é Devir, o conhecimento é contextual e provisório, e a ética deve abraçar a singularidade e a experimentação. A escolha entre essas perspectivas molda profundamente nossa visão de mundo e nossas ações no cotidiano.

Esta distinção não é meramente acadêmica, pois nos força a confrontar a nossa própria impermanência e a impermanência de tudo ao nosso redor. Ao invés de buscar a segurança em identidades fixas ou em verdades absolutas, o reconhecimento do Devir nos convida a uma existência mais adaptável e aberta, onde a capacidade de nos transformarmos e de acolhermos a mudança se torna uma virtude fundamental. A vida não é um substantivo, mas um verbo, um processo contínuo de vir-a-ser.

Como o Devir se manifesta na filosofia antiga?

A manifestação mais emblemática do Devir na filosofia antiga encontra-se, inegavelmente, na figura de Heráclito de Éfeso, o filósofo do fluxo e do fogo. Sua célebre frase sobre não poder entrar duas vezes no mesmo rio ilustra a radicalidade de sua concepção: o rio não é o mesmo, nem o indivíduo que nele pisa. Para Heráclito, a realidade é um constante campo de batalha de opostos, onde a harmonia surge não da ausência de conflito, mas da tensão entre eles, um equilíbrio dinâmico de forças que se alternam sem cessar.

O logos heraclitiano não é uma razão estática ou uma lei imutável, mas a inteligência inerente a esse fluxo, a estrutura que governa a própria mudança. É o princípio unificador que permite que os opostos – dia e noite, vida e morte, guerra e paz – se transformem um no outro, mantendo a coerência do universo em movimento. O fogo, para ele, é a metáfora perfeita dessa dinâmica: ele consome e transforma, mas sua chama permanece, num ciclo de destruição e renovação contínuas.

Apesar da preeminência de Heráclito, a ideia de mudança e ciclos estava presente em outras cosmologias pré-socráticas, embora nem sempre com a mesma radicalidade. Os milesianos, por exemplo, buscavam uma arché (princípio primordial) que, apesar de fundamental, muitas vezes era concebida como algo que se transformava e dava origem a todas as coisas. Anaximandro, com seu ápeiron (o ilimitado), ou Anaxímenes, com o ar que se rarefaz e se condensa, já apontavam para dinâmicas de alteração e geração na constituição do cosmos.

A reação mais forte ao Devir heraclitiano veio de Parmênides de Eleia, que, como vimos, argumentou pela imutabilidade do Ser. Para ele, o movimento e a mudança eram ilusões dos sentidos, pois o Ser não pode vir a ser do não-ser, nem pode deixar de ser e tornar-se não-ser. Sua escola, a Eleática, defendia uma realidade única, indivisível e imóvel, acessível apenas pelo intelecto puro. Essa oposição fundamental entre o fluxo heraclitiano e a imobilidade parmenídica definiu os contornos da metafísica por séculos.

A tentativa de reconciliar essas visões opostas foi uma das grandes tarefas da filosofia grega clássica. Empédocles propôs a existência de quatro elementos (água, ar, terra, fogo) que, embora imutáveis em si, se combinavam e se separavam sob a ação de duas forças cósmicas – o Amor (que une) e o Ódio (que separa) – gerando assim a multiplicidade e o movimento do mundo. Esta era uma forma de Devir, embora menos radical, que preservava a permanência dos elementos enquanto permitia a formação e dissolução das coisas.

Outra importante contribuição veio dos atomistas, como Leucipo e Demócrito. Eles postularam que o universo era composto de átomos indivisíveis e imutáveis que se moviam no vazio. A mudança e o Devir que observamos no mundo macroscópico seriam o resultado da combinação e separação desses átomos em diferentes configurações. Embora os átomos fossem eternos e imutáveis, sua constante movimentação e rearranjo explicavam a dinâmica do mundo sensível, oferecendo uma explicação materialista para o Devir aparente.

Ainda na antiguidade, Platão, profundamente influenciado pela dicotomia Heráclito-Parmênides, elaborou sua teoria das Formas. Para ele, o mundo sensível, com sua impermanência e fluxo constante, é um reflexo do mundo inteligível das Formas perfeitas e eternas. Assim, o Devir do mundo sensível é uma participação imperfeita no Ser imutável das Formas. Ele reconhecia a existência da mudança, mas subordinava-a a uma realidade superior e estável, buscando um equilíbrio que salvasse a possibilidade do conhecimento e da verdade em meio à turbulência da existência.

A manifestação do Devir na filosofia antiga, portanto, não é monolítica. Embora Heráclito seja seu maior expoente, a noção de transformação e fluxo ressoou de diferentes formas, seja como princípio cosmológico, seja como objeto de refutação rigorosa, ou como um problema a ser superado por meio de soluções metafísicas complexas. A antiguidade estabeleceu as bases para uma reflexão duradoura sobre a impermanência e a dinâmica da existência, pavimentando o caminho para futuras reinterpretações.

Devir na filosofia moderna: como pensadores o interpretaram?

A filosofia moderna, embora inicialmente marcada pela busca de fundamentos estáveis – seja na razão (Descartes) ou na experiência (Locke) – encontrou no Devir um campo fértil para novas explorações. Um dos intérpretes mais significativos foi G.W.F. Hegel, que elevou o Devir ao status de princípio central de sua dialética. Para Hegel, a realidade não é estática, mas um processo de constante desenvolvimento do Espírito Absoluto, que se desdobra por meio de um movimento de tese, antítese e síntese. Este é um Devir que busca a totalidade, a autotransformação progressiva rumo à plena consciência de si.

No sistema hegeliano, o Devir não é caótico, mas racional e teleológico, direcionado a um fim último. É um movimento ascendente que integra e supera as contradições, revelando a verdade como o processo inteiro de sua formação. Cada estágio do Devir incorpora e transforma os anteriores, sem nunca os abandonar completamente. A história, a cultura e o pensamento humano são as manifestações desse Devir do Espírito, que se realiza na temporalidade, mas tende a uma síntese final e abrangente. A racionalidade do real reside precisamente nessa sua dinâmica histórica.

No século XIX, Arthur Schopenhauer, com sua filosofia da “vontade”, apresentou um Devir de natureza diferente. Para ele, a realidade fundamental não é a razão, mas uma vontade irracional e cega que impulsiona tudo, uma força de desejo incessante que se manifesta em todos os fenômenos. O mundo é, portanto, uma dança incessante de manifestações dessa vontade, sem propósito ou repouso. O Devir aqui é a expressão da eterna insatisfação e do sofrimento inerente a essa vontade, uma reprodução incessante de si mesma em diversas formas.

Foi, entretanto, Friedrich Nietzsche quem talvez tenha dado ao Devir sua interpretação mais radical e desestabilizadora na modernidade. Rejeitando qualquer telos ou objetivo final, Nietzsche abraçou o Devir heraclitiano em sua plenitude, concebendo a realidade como a eterna “vontade de potência”. Não há ser, apenas um eterno vir-a-ser, um jogo de forças em constante tensão e transformação. Ele propôs o conceito de “eterno retorno do mesmo”, não como uma repetição idêntica, mas como a afirmação da dança sem fim do Devir, onde cada instante é infinitamente valioso em sua singularidade.

Para Nietzsche, o Devir não é um caminho para a perfeição ou para um estado final, mas a própria realidade em sua superabundância, em sua capacidade de criar e destruir. A vida é um fluxo de valores que se criam e se anulam, um processo de transvaloração contínua. A tarefa do filósofo e do artista é afirmar esse Devir, tornar-se o que se é no fluxo da transformação, abraçar a impermanência e a pluralidade da existência. Essa perspectiva abriu caminho para as filosofias pós-modernas que rejeitam os grandes narrativas e a busca por fundamentos absolutos.

Mais tarde, no século XX, Henri Bergson trouxe o conceito de Devir para o centro de sua metafísica com a noção de “duração” (durée). Para Bergson, o tempo real não é uma sucessão de instantes discretos, mas uma fluidez contínua e indivisível, uma experiência vivida de duração pura, onde o passado se funde com o presente e o futuro. O Devir é a própria essência da vida e da consciência, um “elan vital” que impulsiona a evolução e a criação. Sua filosofia contrapõe a intuição desse fluxo à análise conceitual, que, segundo ele, tende a espacializar e solidificar o que é intrinsecamente dinâmico.

Essas interpretações modernas do Devir demonstram sua capacidade de adaptação e renovação. De um Devir teleológico em Hegel, passando pela vontade cega de Schopenhauer, até a vontade de potência de Nietzsche e a duração de Bergson, o conceito evoluiu para desafiar as noções de estabilidade e substância. Ele se tornou uma ferramenta para pensar a história, a vida, a subjetividade e a arte não como entidades fixas, mas como processos em constante elaboração. Esta abordagem dinâmica abriu portas para uma compreensão mais nuançada da complexidade do real e da experiência humana.

Qual a visão de Deleuze e Guattari sobre o Devir?

Gilles Deleuze e Félix Guattari são, sem dúvida, os pensadores que levaram o conceito de Devir a um de seus pontos mais radicais e inovadores na filosofia contemporânea. Para eles, o Devir não é uma mera sucessão de estados ou uma transição de um ser para outro, mas uma desterritorialização do sujeito, um movimento de fuga de identidades fixas e de linhas de segmentação. É um processo que não conduz a um novo ser, mas que se mantém na zona de indeterminação e de multiplicidade, uma linha de fuga ativa que rompe com as formas estabelecidas.

O Devir, em sua concepção, não é mimético. Não se trata de “imitar” ou “tornar-se como” algo, mas de entrar em uma zona de indiscernibilidade com aquilo que se devém. Um Devir-animal, por exemplo, não significa virar um animal, mas entrar em um agenciamento com forças animais, perder os contornos humanos predefinidos, experimentar a multiplicidade, a velocidade, os afetos de um animal sem, no entanto, deixar de ser humano. É uma experiência de despersonalização e de intensificação da vida, uma busca por novas potências de agir e sentir.

Essa ideia de Devir está intrinsecamente ligada à sua concepção do “corpo sem órgãos” (CsO), uma superfície que resiste à organização e à estratificação. O Devir é o movimento que desfaz as organizações molares – identidades, gêneros, classes, categorias – e nos lança em um plano de consistência onde prevalecem as multiplicidades e os agenciamentos desejantes. É uma experimentação rizomática, que cresce por conexões transversais, sem hierarquia ou centro, desafiando as lógicas binárias e as estruturas arborescentes de pensamento.

Deleuze e Guattari distinguem vários tipos de Devir, como o Devir-mulher, Devir-criança, Devir-animal, Devir-molecular. Cada um desses Devires representa uma fuga de identidades dominantes e uma exploração de novas configurações existenciais. O Devir-mulher, por exemplo, não é ser uma mulher no sentido biológico ou social, mas uma forma de se desviar das representações masculinas hegemônicas, de se conectar com forças e afetos que historicamente foram suprimidos ou marginalizados, experimentando uma multiplicidade de feminilidades que transcendem o gênero fixo.

O Devir é sempre coletivo, mesmo quando parece individual. Não é uma experiência isolada, mas o resultado de um agenciamento entre elementos heterogêneos. É um fluxo de afetos e intensidades que atravessa corpos, palavras, coisas, criando novas configurações provisórias. A vida, nesse sentido, é um eterno Devir, uma proliferação de agenciamentos que se formam e se desfazem, continuamente reinventando as possibilidades do existente. Essa visão vitalista e anti-essencialista da existência é central para a sua filosofia.

Eles também enfatizam que o Devir não é um futuro a ser alcançado, mas uma zona de proximidade. Não se trata de se tornar algo que ainda não se é, mas de experimentar os limites da própria identidade, de liberar potências inexploradas que já estão presentes. O Devir é a linha de fuga, o movimento de desterritorialização que abre novas paisagens de experiência e de pensamento. É uma estratégia de resistência contra os poderes que buscam fixar, categorizar e controlar os indivíduos.

A visão de Deleuze e Guattari sobre o Devir é um convite à experimentação contínua da vida, à criação de novas formas de existência fora dos modelos preestabelecidos. É uma celebração da singularidade e da multiplicidade, um reconhecimento da capacidade de cada um de se reinventar e de se conectar com o mundo de maneiras inesperadas. A filosofia, para eles, é precisamente essa atividade de criar conceitos que nos permitem pensar e viver de novas maneiras, de navegar pelos fluxos do Devir sem nos fixarmos em identidades estanques.

De que forma o Devir se relaciona com a identidade?

A relação entre Devir e identidade é um dos aspectos mais instigantes e desafiadores do conceito de transformação incessante. Se o Devir postula que tudo está em fluxo contínuo, a noção de identidade, por sua vez, sugere uma permanência, uma essência ou um núcleo que se mantém ao longo do tempo. A tensão entre esses dois polos é crucial para a compreensão da subjetividade e da existência. Historicamente, a filosofia ocidental tendeu a privilegiar a identidade, buscando um “Ser” estável por trás das aparências mutáveis, mas o Devir subverte essa primazia.

Em uma perspectiva de Devir, a identidade não é um ponto fixo de partida ou de chegada, mas um efeito provisório do fluxo, uma cristalização temporária de forças e agenciamentos. Não somos, mas estamos nos tornando. A própria ideia de um “eu” substancial, uno e coerente, é desconstruída em favor de uma subjetividade múltipla, fluida e em constante reconfiguração. A identidade pessoal, nesse sentido, é menos uma essência e mais uma narrativa em constante reescrita, um conjunto de hábitos e memórias que se adaptam e se transformam.

O Devir nos desafia a reconsiderar a rigidez de categorias como gênero, raça, nacionalidade e até mesmo a própria espécie. Se tudo está em Devir, então as fronteiras entre essas categorias são porosas e constantemente negociadas. O Devir-mulher, ou Devir-animal, em Deleuze e Guattari, não é um abandono da própria identidade, mas uma exploração dos limites e da plasticidade do que significa ser humano, abrindo a subjetividade para novas linhas de fuga e para a multiplicidade de afetos e percepções.

A identidade, vista pelo prisma do Devir, é um campo de forças dinâmicas, onde diferentes elementos se cruzam, se chocam e se rearranjam. Não há um “eu” pré-existente esperando para ser descoberto, mas um processo contínuo de autoconstrução, onde as experiências, os encontros e as interações moldam incessantemente quem somos. A nostalgia de um eu autêntico e imutável é substituída pela aceitação da própria impermanência e pela capacidade de se reinventar a cada momento.

Esta perspectiva implica uma liberação das amarras identitárias que muitas vezes nos limitam. Ao invés de nos definirmos por quem fomos ou por rótulos preexistentes, o Devir nos convida a explorar quem podemos nos tornar, as potencialidades latentes que aguardam ser atualizadas. A crise de identidade, nesse contexto, pode ser vista não como um problema a ser resolvido, mas como uma oportunidade para a proliferação de novas formas de ser e de experimentar o mundo, uma abertura para a criatividade existencial.

A tabela a seguir contrasta a visão tradicional de identidade com a perspectiva do Devir:

Em suma, o Devir dissolve a solidez da identidade em um fluxo de acontecimentos, onde o “eu” não é um sujeito estável, mas um ponto de passagem de intensidades, um nó em uma rede de relações. A própria memória, que parece ancorar a identidade no passado, é ela mesma um Devir, pois a cada rememoração o passado é reconstruído no presente, se tornando algo novo. A subjetividade é, assim, uma obra em progresso incessante, sempre em processo de vir-a-ser, nunca completamente definida ou finalizada.

A implicação mais profunda dessa perspectiva é que a vida não é sobre “ser” alguém específico, mas sobre o infinito potencial de se transformar. A aceitação do Devir como a essência da identidade é um convite à liberdade de experimentar, de se arriscar, de transcender os limites impostos pelas definições estáticas. A busca não é por um eu “verdadeiro” e imutável, mas pela capacidade de habitar a multiplicidade e a contingência, abraçando a contínua invenção de si mesmo no grande rio da existência.

O Devir é sempre positivo ou pode ter aspectos desafiadores?

Embora o Devir seja frequentemente associado a noções de progresso, crescimento e libertação, especialmente em filosofias que celebram a fluidez e a superação de formas fixas, seria ingênuo considerá-lo como um processo inerentemente positivo ou benéfico. O Devir, em sua essência, é uma força amoral e impessoal, uma torrente que simplesmente é, sem juízos de valor. Sua natureza implica tanto a criação quanto a destruição, a emergência de novas possibilidades e a dissolução do que era estabelecido, o que pode ser profundamente desafiador e até mesmo aterrador.

Um dos aspectos mais desafiadores do Devir é a incerteza radical que ele impõe. Se nada permanece o mesmo, então a estabilidade, a segurança e a previsibilidade, tão valorizadas na existência humana, são constantemente minadas. Essa ausência de ancoragem pode gerar ansiedade, medo e uma sensação de perda. O chão sob os pés está sempre se movendo, e a tentativa de se apegar a algo fixo se revela uma luta inglória contra a própria natureza da realidade, um desafio existencial profundo.

O Devir também envolve a perda e o luto. Ao nos transformarmos, abandonamos versões anteriores de nós mesmos, e o mundo ao nosso redor se altera. Pessoas, relações, crenças e estruturas sociais passam por um processo de vir-a-ser que pode culminar em seu desaparecimento. Essa experiência de dissolução, seja de uma identidade profissional, de um relacionamento ou de uma ideologia, é intrínseca ao Devir e muitas vezes dolorosa. Não há garantias de que o novo que emerge será melhor, apenas que será diferente.

A ausência de um telos ou de um propósito final, particularmente em interpretações nietzschianas e deleuzianas do Devir, pode ser outro desafio. Se não há um objetivo último para o qual a vida se dirige, e se a existência é um jogo sem fim de forças e potências, então a busca humana por sentido e significado pode parecer vazia. Essa falta de um “para quê” pode levar ao niilismo, à sensação de que nada tem valor intrínseco, um efeito colateral da plena aceitação da transitoriedade e da ausência de fundamentos.

A força desorganizadora do Devir pode ser percebida como caos e anarquia. As estruturas sociais, políticas e mesmo psicológicas são incessantemente tensionadas pelo Devir, podendo levar a rupturas e desordens. Embora essa desordem possa ser criativa e abrir espaço para o novo, ela também pode resultar em sofrimento, violência e colapso. A história está repleta de exemplos de sociedades e indivíduos que não conseguiram navegar as ondas do Devir, sendo tragados por suas correntes sem encontrar um novo porto.

Além disso, a aceleração do Devir na era contemporânea, impulsionada pela tecnologia e pela globalização, amplifica esses desafios. A rápida obsolescência de habilidades, a fluidez das informações, a volatilidade das relações – tudo isso exige uma capacidade de adaptação sem precedentes. O que ontem era certo, hoje é obsoleto; o que era estável, hoje é líquido. Essa velocidade pode gerar uma sensação de esgotamento e de incapacidade de acompanhar as transformações, levando a um descompasso entre o indivíduo e o mundo.

Reconhecer os aspectos desafiadores do Devir não diminui sua importância, mas a complexifica. Significa que a aceitação do fluxo não é passiva ou ingênua, mas exige uma resiliência, uma capacidade de luto e uma disposição para reconstruir constantemente. O Devir não é um caminho fácil, mas a condição intrínseca da existência. Abordá-lo com consciência plena de suas luzes e sombras é essencial para uma existência mais autêntica e engajada com a própria dinâmica da vida.

Como o conceito de Devir permeia a arte e a criação?

O conceito de Devir encontra na arte e na criação um de seus terrenos mais férteis e expressivos. A própria natureza do processo criativo é um Devir: a passagem da ideia informe para a obra concretizada, a transformação de materiais brutos em formas significativas, e a constante reinvenção das linguagens artísticas. A arte não é estática; ela é um fluxo incessante de experimentação, de rupturas com o estabelecido e de emergência de novas estéticas, refletindo a dinâmica intrínseca do vir-a-ser.

Em muitas formas de arte, o Devir se manifesta explicitamente no processo em si, e não apenas no produto final. A performance art, por exemplo, é intrinsecamente ligada ao Devir, pois sua existência é efêmera e se desdobra no tempo, dependendo da interação com o público e do contexto do momento. Cada performance é única e irrepetível, uma manifestação fugaz e transitória que nunca pode ser recriada exatamente da mesma forma. A essência da obra reside no seu acontecer, no seu vir-a-ser ali e agora.

As artes visuais, embora tradicionalmente ligadas a objetos estáticos, também incorporam o Devir. A pintura gestual, como o expressionismo abstrato, revela o processo do artista, a energia do ato de pintar, a transformação da tela. O próprio ato de ver uma obra de arte é um Devir: a cada nova experiência, a obra se revela de uma maneira diferente, transformando-se na percepção do espectador. O conceito de recepção estética é, em si, um processo dinâmico de interpretação e ressignificação.

Na literatura, o Devir se manifesta na evolução dos personagens, na transformação das narrativas e na fluidez da linguagem. Grandes obras literárias exploram a impermanência da identidade, as mudanças sociais e as complexas dinâmicas temporais. A própria escrita é um Devir, um fluxo de ideias que se materializam em palavras, mas que estão sempre abertas a novas interpretações e a novas ressignificações por parte do leitor, que por sua vez, também está em constante vir-a-ser.

A música, por sua natureza temporal, é talvez a arte que mais intrinsecamente encarna o Devir. Ela é um fluxo de sons em constante movimento, uma sequência de notas e ritmos que se desdobram no tempo, criando e dissolvendo harmonias e melodias. A improvisação, em particular, é o Devir musical em sua forma mais pura: o músico cria no instante, respondendo ao fluxo do som, à interação com outros músicos e ao ambiente. É uma criação espontânea e irrecuperável, um Devir sonoro.

A lista a seguir apresenta algumas manifestações do Devir em diferentes expressões artísticas:

• Pintura e Escultura: O uso de materiais que mudam com o tempo (corrosão, oxidação), obras de arte processuais que se transformam, instalações interativas que se alteram com a presença do público, ou a própria evolução do estilo de um artista ao longo da vida.
• Dança: O corpo em movimento, a fluidez dos gestos, a coreografia que se desdobra no espaço-tempo, a efemeridade de cada passo e a constante reinvenção de sequências.
• Cinema e Audiovisual: A montagem que cria um fluxo narrativo, a evolução das personagens, as transformações visuais e sonoras, e a capacidade de capturar o movimento e a mudança intrínseca da realidade.
• Teatro: A interpretação viva que nunca é a mesma em cada apresentação, a relação dinâmica entre atores e plateia, a evolução do enredo e das emoções em tempo real.
• Arquitetura: Embora estruturalmente fixa, a arquitetura moderna e contemporânea explora formas dinâmicas, materiais que reagem à luz ou ao tempo, e espaços que se transformam com o uso e a interação humana.

A arte, ao abraçar o Devir, torna-se um laboratório de experimentação existencial, onde novas formas de ser e de perceber podem ser exploradas. Ela nos convida a sair das categorias fixas e a nos abrirmos para a singularidade do momento, para a potência da transformação. A criação artística é, portanto, um ato de Devir-mundo, onde o artista se agência com as forças do cosmos para produzir novas realidades, questionando as fronteiras e expandindo os limites do que é possível experimentar e expressar.

Essa profunda conexão entre arte e Devir ressalta que a criatividade não é um fim em si, mas um meio para viver mais intensamente o fluxo da existência. A arte, ao invés de buscar a eternidade ou a perfeição estática, celebra a beleza do efêmero, a força do inacabado e a vitalidade da metamorfose. Ela é um convite para nos entregarmos à dinâmica incessante da vida, transformando-nos no processo de sua criação e contemplação.

Devir e a experiência humana: como se aplica ao cotidiano?

O Devir, longe de ser um conceito puramente abstrato, permeia de forma intrínseca a experiência humana cotidiana, moldando cada aspecto de nossa existência. Desde o nível biológico, onde as células se regeneram e os corpos envelhecem, até o nível psicológico e social, onde nossas ideias, emoções e relações estão em constante mutação, somos seres em Devir. A cada respiração, a cada pensamento, a cada interação, algo se transforma em nós e ao nosso redor, revelando a impermanência como a única certeza.

No âmbito pessoal, o Devir se manifesta como crescimento e desenvolvimento. Da infância à velhice, passamos por múltiplas transformações físicas, cognitivas e emocionais. Aprendemos novas habilidades, mudamos de opiniões, adaptamos nossas crenças, e a própria personalidade evolui. Essa dinâmica contínua de aprendizagem e desaprendizagem é a essência do Devir pessoal. Aquela pessoa que éramos há dez anos não é exatamente a mesma hoje, e a que seremos daqui a dez anos ainda está em construção, um eterno vir-a-ser.

As relações humanas são um campo privilegiado do Devir. Amizades e amores nascem, se desenvolvem, enfrentam desafios e, muitas vezes, se transformam ou se dissolvem. A comunicação é um fluxo constante de interpretações e reinterpretações, onde mal-entendidos surgem e são resolvidos, e novas compreensões são alcançadas. A família, o trabalho e os círculos sociais são todos agenciamentos dinâmicos, onde cada interação modifica levemente as estruturas e as conexões, criando um tecido social em eterna recomposição.

A própria rotina, por mais que pareça estática, é atravessada por fluxos de Devir. O trajeto diário, que parece o mesmo, é afetado pelas condições climáticas, pelo trânsito, pelo humor das pessoas que encontramos. O trabalho, mesmo que repetitivo, exige adaptação a novas ferramentas, novos desafios, novas interações com colegas. A cada momento, estamos tomando decisões, pequenas e grandes, que desviam o curso da nossa existência, mesmo que imperceptivelmente, em um microssistema de Devir.

A tecnologia é um vetor poderoso de Devir no cotidiano contemporâneo. A rápida obsolescência de dispositivos, a constante atualização de softwares, a emergência de novas formas de comunicação e interação digital – tudo isso exige uma adaptação contínua e acelerada. Nossas identidades digitais estão em Devir, sendo constantemente construídas e reconstruídas através de perfis, interações e dados, um fluxo informacional que reflete e refrata a nossa existência offline.

A aceitação do Devir no cotidiano significa cultivar uma atitude de abertura e flexibilidade. Ao invés de resistir à mudança, podemos aprender a abraçá-la como parte integrante da vida. Isso envolve desapego de planos rígidos, aceitação de imprevistos e a capacidade de reinventar-se diante de novas circunstâncias. É a capacidade de ser como a água, que se adapta ao recipiente, ou como o vento, que flui sem apego a uma direção única, uma dança com a impermanência.

Portanto, o Devir não é um conceito distante da vida prática, mas a própria tessitura da nossa realidade diária. Ele nos convida a observar com mais atenção as pequenas e grandes transformações que nos cercam e que nos constituem. Reconhecer o Devir é viver de forma mais consciente, menos apegada a identidades fixas e mais aberta às infinitas possibilidades de vir-a-ser que cada momento nos oferece, tornando a vida uma aventura contínua de descobertas e reinvenções, um processo incessante de fluidez.

Existe uma ética do Devir?

A questão de se existe uma ética do Devir é profundamente instigante, pois se a moralidade tradicional frequentemente busca fundamentos estáveis e universais, o Devir, por sua natureza fluida e anti-essencialista, parece minar a possibilidade de tais pilares fixos. Contudo, pensadores como Nietzsche e Deleuze sugerem que uma ética do Devir não é apenas possível, mas necessária, emergindo da própria afirmação da vida em seu fluxo. Não se trata de um código de conduta rígido, mas de uma atitude existencial e criativa diante da impermanência.

Uma ética do Devir implica, primeiramente, a afirmação radical da vida em todas as suas manifestações, inclusive as mais caóticas e imprevisíveis. É a aceitação do “eterno retorno do mesmo” nietzschiano não como uma condenação, mas como um convite a viver cada instante com tal intensidade que se deseje sua repetição infinita. É uma ética da potência, que valoriza a capacidade de agir, de criar e de se transformar, em vez de se conformar a valores preestabelecidos ou a uma moralidade de rebanho. A virtude seria a capacidade de Devir.

O exercício da liberdade é central para uma ética do Devir. Não é a liberdade de escolha entre opções fixas, mas a liberdade de se desterritorializar, de criar novas linhas de fuga, de inventar novas formas de vida. Isso envolve a coragem de romper com identidades fixas, com as expectativas sociais e com as moralidades dominantes que buscam nos aprisionar em categorias estáticas. É a liberdade de se tornar o que ainda não se é, de explorar as múltiplas potencialidades do ser em movimento.

A responsabilidade no Devir ganha uma dimensão singular. Não é a responsabilidade por um “eu” substancial, mas pela geração de novos agenciamentos e pela qualidade das forças que se libera no mundo. É uma ética da criação ativa, onde cada ato contribui para a complexidade e a riqueza do fluxo existencial. Isso implica uma auto-superação contínua, um esforço para ir além dos próprios limites, para expandir as próprias capacidades de sentir, pensar e agir, sem se deter em repouso moral.

Uma ética do Devir também promove a singularidade e a multiplicidade. Ao invés de buscar a conformidade a um ideal universal, ela celebra a diferença, a emergência de novas perspectivas e a proliferação de modos de vida. O Devir-minoritário, por exemplo, é uma forma de resistência ativa contra as normas majoritárias, uma maneira de afirmar a potência dos grupos e indivíduos marginalizados, criando novas possibilidades de existência. É uma ética da diferenciação, que valoriza o inusitado e o não padronizado.

A lista a seguir resume alguns princípios de uma ética baseada no Devir:

• Afirmação da Vida: Viver plenamente o fluxo, aceitando a impermanência e a transitoriedade.
• Criatividade Contínua: Buscar a invenção de novas formas de ser e de experimentar, rompendo com o estabelecido.
• Experimentação: Ousar explorar os próprios limites e as potencialidades da existência sem medo do desconhecido.
• Desterritorialização: Resistir às fixações identitárias e às categorias preestabelecidas que limitam o fluxo.
• Risco e Incerteza: Abraçar a contingência e a imprevisibilidade, encontrando beleza no caos e na indeterminação.
• Multiplicidade: Valorizar a singularidade e a diferença, promovendo a proliferação de modos de vida.

Essa ética não oferece respostas prontas, mas um horizonte de possibilidades. Ela nos convida a sermos artistas da própria existência, esculpindo e resculpindo a nós mesmos no fluxo do tempo. Não se trata de uma busca por felicidade estática, mas por uma intensidade de vida, por uma capacidade de agir e ser afetado de maneiras cada vez mais ricas. A ética do Devir é, em sua essência, uma celebração da potência e da transformação, um convite a dançar com o caos criativo do mundo.

Viver uma ética do Devir significa cultivar uma sensibilidade para as linhas de fuga, para as pequenas frestas onde o novo pode emergir. É estar constantemente atento às mutações, tanto internas quanto externas, e ser capaz de se adaptar a elas sem perder a própria potência. Não é a ausência de princípios, mas a reavaliação constante dos valores à luz do fluxo incessante da vida, uma moralidade em perpétua construção e adaptação, sem a pretensão de ser universal e imutável.

Devir e tempo: qual a conexão íntima?

A conexão entre Devir e tempo é intrínseca e indissociável, pois o Devir é, por excelência, o movimento da temporalidade em si, a própria experiência do tempo em seu fluir irrefreável. O tempo não é apenas o palco onde o Devir acontece, mas a sua própria substância. Se o Ser busca a eternidade e a atemporalidade, o Devir abraça a duração e a transitoriedade, revelando o tempo não como uma sucessão linear de instantes discretos, mas como uma realidade viva e orgânica que se desdobra continuamente.

Para Heráclito, o tempo é o fluxo incessante do rio, onde cada instante é novo e irrepetível. Não há retorno ao mesmo ponto, apenas a contínua emergência do diferente. Essa concepção do tempo como um rio que nunca para de correr está no cerne da sua ideia de Devir, onde a realidade é uma constante passagem de ser para não-ser e vice-versa. O tempo não é um contêiner, mas o próprio conteúdo em eterna transformação, a medida da mudança universal.

Henri Bergson desenvolveu profundamente essa relação com sua teoria da “duração” (durée). Para ele, o tempo vivido, o tempo da consciência e da vida, não é o tempo mensurável do relógio – que ele considerava uma espacialização e uma solidificação do tempo. A duração é uma fluidez contínua e indivisível, onde o passado se prolonga no presente e o presente se abre para o futuro em um movimento de criação e novidade incessantes. O Devir é a própria duração, a experiência interna do fluxo vital.

A duração bergsoniana é, portanto, o tempo em sua essência de Devir, um tempo que se inventa a cada instante, que acumula experiência e que não se repete. Cada momento da duração é único, imprevisível e criativo. A nossa própria memória não é um repositório estático de fatos passados, mas uma durante viva que reconstrói o passado no presente, tornando-o parte de um Devir contínuo da consciência. A vida é um élan vital, uma força que impulsiona a evolução e a criação no tempo.

Deleuze, inspirado em Bergson e Nietzsche, também oferece uma visão complexa da relação entre Devir e tempo. Ele distingue entre Cronos (o tempo linear e mensurável, o tempo do trabalho e do devir-outro, do que se torna) e Aion (o tempo imaterial do acontecimento, o tempo do Devir propriamente dito, do que se devém). Aion é o tempo do puro evento, do corte que irrompe na linearidade, do instante em que algo se desvia e se abre para o novo. É o tempo do encontro e da criação.

A tabela a seguir contrasta diferentes perspectivas de tempo em relação ao Devir:

A aceitação do Devir como a essência do tempo nos liberta da obsessão com o controle e a previsibilidade. Ao invés de tentarmos aprisionar o tempo em caixas e cronogramas, somos convidados a viver cada instante em sua singularidade, a nos abrirmos para o inesperado e para a emergência do novo. O tempo, nessa perspectiva, não é um recurso a ser gerenciado, mas uma dimensão a ser habitada em sua plena potencialidade de transformação.

Viver o Devir do tempo significa estar presente, atento aos micro-acontecimentos que reconfiguram a realidade a cada segundo. É reconhecer que o passado não é fixo, o presente é um ponto de efervescência e o futuro é uma construção contínua. A intimidade entre Devir e tempo nos oferece uma compreensão mais profunda da vida como um processo sem fim, uma aventura em constante elaboração onde a única constante é a impermanência e a novidade que brotam a cada instante.

Devir e espaço: como se desdobra na geografia existencial?

A relação entre Devir e espaço é tão profunda quanto a com o tempo, embora talvez menos intuitiva à primeira vista. Se o tempo é o fluxo do vir-a-ser, o espaço é o campo onde esse fluxo se desdobra, onde as forças do Devir se materializam e se desterritorializam. Para pensadores como Deleuze e Guattari, o espaço não é um mero palco neutro, mas uma construção ativa de territorialidades e um campo de forças que permite e impede o Devir, uma geografia existencial que está em constante reconfiguração.

O conceito de “territorialização” e “desterritorialização” é central aqui. A territorialização é o movimento de criar um espaço, de marcá-lo, de atribuir-lhe significado, de fixar formas e identidades. É o processo de dar uma organização ao caos, de construir um lar, uma fronteira, uma cultura. Este é o aspecto do espaço que busca a estabilidade e a permanência, que resiste ao Devir, embora nunca consiga pará-lo completamente. Cidades, casas, corpos, ideias – todos são territórios em potencial.

Em contraste, a desterritorialização é o movimento do Devir no espaço: a fuga das fixações, a dissolução das fronteiras, a desorganização das formas estabelecidas. É o que permite o surgimento do novo, a exploração de espaços nômades e rizomáticos. Um artista que rompe com as convenções de um museu está desterritorializando a arte; um migrante que atravessa fronteiras está desterritorializando sua identidade; um rio que muda seu curso está desterritorializando a paisagem. A força do Devir se manifesta na capacidade de desfazer e refazer os territórios.

A geografia existencial é, portanto, um campo de batalhas de forças entre a estabilidade da territorialização e a fluidez da desterritorialização. Nossos corpos são territórios, mas também estão em Devir, em constante desterritorialização através da doença, do envelhecimento, ou de experiências intensas que alteram nossa percepção. Nossas mentes são territórios de pensamentos, mas também estão em Devir, através do aprendizado, da criatividade e da reorganização contínua das sinapses.

O espaço, para o Devir, não é homogêneo nem vazio, mas preenchido por intensidades e linhas de fuga. Um determinado lugar pode evocar um Devir-máquina, um Devir-cidade, um Devir-paisagem, dependendo das forças que ali se agenciam. A arquitetura, o urbanismo, a paisagem natural – todos são campos onde o Devir se manifesta através de seus movimentos de construção, destruição, erosão e renovação. A própria percepção do espaço é um Devir, que se altera com a nossa experiência e os nossos afetos.

Pode-se observar o Devir no espaço em fenômenos como:

• Cidades em Mutação: A constante construção, demolição, revitalização de bairros, a gentrificação e a emergência de novas subculturas que redefinem o uso e o significado do espaço urbano.
• Fronteiras Porosas: As fronteiras geográficas, políticas e culturais não são fixas, mas constantemente negociadas, contestadas e redefinidas pelos fluxos de pessoas, informações e capitais.
• Corpos e Ambientes: A forma como nossos corpos se adaptam e transformam o espaço ao nosso redor, e como o espaço, por sua vez, molda nossos hábitos e percepções. O corpo é um espaço em Devir.
• Ecossistemas Dinâmicos: A paisagem natural está em constante Devir através de processos geológicos, climáticos, e da intervenção humana, que alteram montanhas, rios e florestas.
• Espaços Virtuais: A internet e as realidades virtuais são espaços em constante Devir, sem fixação física, onde identidades e comunidades se formam e se desfazem em fluxos informacionais.

Essa compreensão do Devir no espaço nos convida a pensar a nossa relação com o ambiente de forma mais dinâmica e menos estática. Ao invés de buscar a estabilidade e a posse, somos convidados a habitar o espaço como um campo de potências, de agenciamentos e de transformações. O Devir espacial nos leva a reconhecer que cada lugar é um nó em uma rede de fluxos, e que a própria experiência de estar em um lugar é um processo contínuo de se tornar.

A geografia existencial do Devir é, assim, uma paisagem de movimentos e metamorfoses. Ela nos permite conceber os espaços não como entidades rígidas, mas como campos de forças onde a vida se desdobra em sua incessante capacidade de criar, de destruir e de se reinventar, de territorializar e desterritorializar, em uma dança contínua que desafia qualquer tentativa de fixação.

O Devir nas ciências sociais: um olhar sobre a sociedade em transformação.

Nas ciências sociais, o conceito de Devir oferece uma lente poderosa para compreender a sociedade não como uma estrutura estática, mas como um organismo vivo e em constante transformação. Sociedades, culturas, instituições e identidades sociais estão longe de serem fixas; elas são fluxos de práticas, discursos, relações de poder e resistências que incessantemente se reconfiguram. O Devir social revela a natureza intrínseca da mudança como motor da história e da vida coletiva.

A sociologia e a antropologia, ao estudar as dinâmicas sociais, frequentemente se deparam com o Devir. As mudanças culturais, por exemplo, não são meras alterações superficiais, mas processos profundos de Devir, onde valores, crenças e costumes emergem, se consolidam, se transformam e, por vezes, desaparecem. A moda, a linguagem, as expressões artísticas populares – tudo isso reflete um Devir cultural acelerado, onde o novo constantemente desafia e substitui o antigo, num ciclo incessante de reinvenção.

Os movimentos sociais são um exemplo claro do Devir político-social. Eles surgem em resposta a tensões e insatisfações, agenciando forças diversas para contestar o status quo. Ao reivindicar novas formas de vida, direitos ou reconhecimento, eles operam uma desterritorialização do poder e uma reterritorialização de novas identidades e práticas. A própria sociedade é constantemente renegociada e reformada através da ação coletiva, um Devir político em ebulição.

A globalização é um macro-processo de Devir que reconfigura o mundo inteiro. Fluxos de capital, informações, pessoas e culturas atravessam fronteiras, conectando e desconectando espaços, gerando novas identidades híbridas e dissolvendo antigas. Essa aceleração dos fluxos globais impõe um ritmo de Devir que exige das sociedades uma capacidade de adaptação sem precedentes, gerando ao mesmo tempo novas oportunidades e grandes desafios, como a crise climática global, que exige uma resposta em Devir.

No campo da economia, o Devir se manifesta nas constantes inovações tecnológicas, na obsolescência de modelos de negócios e na emergência de novas formas de trabalho e consumo. O capitalismo é, em si, um sistema impulsionado pelo Devir, pela necessidade incessante de expansão e reinvenção, de destruição criativa, como articulado por Schumpeter. Novas tecnologias e mercados surgem, alterando as relações de produção e consumo, em um fluxo econômico contínuo.

A lista a seguir destaca áreas das ciências sociais onde o Devir é particularmente visível:

• Antropologia: Estudo das transformações culturais, rituais de passagem, sincretismos e hibridismos culturais.
• Sociologia: Análise das mudanças sociais, movimentos sociais, formação de novas identidades coletivas e desestruturação de antigas classes e grupos.
• Ciência Política: Revoluções, reformas políticas, emergência de novas formas de governança e dissolução de estados.
• Economia: Ciclos econômicos, inovação tecnológica, obsolescência, globalização e a dinâmica do mercado.
• Estudos de Gênero e Raça: A construção social e o Devir das identidades de gênero e raciais, superando essencialismos e promovendo a fluidez.

O Devir nas ciências sociais nos convida a pensar a história não como um caminho linear rumo a um fim predeterminado, mas como um campo aberto de possibilidades, onde o futuro é constantemente criado e recriado através das ações humanas e das forças impessoais. As teorias que abraçam o Devir, como as de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, apesar de não usarem o termo explicitamente, reconhecem a natureza processual e relacional das estruturas sociais e do poder.

Ao reconhecer o Devir como força motriz da sociedade, as ciências sociais podem desenvolver análises mais flexíveis e menos deterministas, capazes de apreender a complexidade e a imprevisibilidade do social. A compreensão de que as identidades e estruturas são fluidas e contingentes abre espaço para a intervenção, para a criação de novos agenciamentos e para a possibilidade de transformação, em um movimento contínuo de vir-a-ser social e coletivo.

Como a psicologia entende o Devir do sujeito?

Na psicologia, o conceito de Devir se manifesta profundamente na compreensão da subjetividade humana, da personalidade e do processo de desenvolvimento ao longo da vida. Longe de ser uma entidade fixa e imutável, o sujeito é visto como um ser em constante vir-a-ser, moldado por experiências, relações e um contínuo processo de aprendizagem e reelaboração. Essa perspectiva desafia a ideia de um “eu” estável, propondo uma identidade fluida e dinâmica que se reconstrói a cada momento.

Diversas abordagens psicológicas incorporam, de formas distintas, o Devir do sujeito. Na psicologia do desenvolvimento, por exemplo, o ser humano é compreendido em estágios de maturação e transformação, desde a infância até a velhice. Teorias como as de Jean Piaget (desenvolvimento cognitivo) ou Erik Erikson (desenvolvimento psicossocial) descrevem um sujeito que se transforma através de crises e superações, construindo sua identidade em um fluxo contínuo de adaptação ao mundo e a si mesmo.

A psicanálise, embora lide com estruturas inconscientes, também aborda o Devir através da dinâmica do psiquismo. O sujeito freudiano está em constante Devir através dos conflitos e das pulsões, das formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, sintomas) que revelam uma subjetividade em eterna negociação com seus desejos e proibições. O processo terapêutico é, em si, um Devir: um caminho de transformação e reelaboração de sentidos, onde o sujeito se torna capaz de habitar sua própria complexidade e suas múltiplas facetas.

Na psicologia humanista e existencial, com pensadores como Carl Rogers e Abraham Maslow, o Devir é central para a ideia de autorrealização e crescimento pessoal. O indivíduo é visto como um ser com potencial inato para o desenvolvimento, em um processo contínuo de tornar-se quem realmente é, ou melhor, de tornar-se o que pode vir a ser. A ênfase é na capacidade de escolha, na busca de sentido e na construção ativa da própria existência, em um fluxo de possibilidades.

A psicologia social, por sua vez, mostra como o Devir do sujeito está intrinsecamente ligado ao Devir da sociedade. Nossas identidades são moldadas por interações sociais, papéis desempenhados, e narrativas culturais que estão em constante mutação. A formação de grupos e identidades coletivas é um processo de Devir, onde indivíduos se agenciam para formar novas subjetividades e modos de existência, em um diálogo incessante com o meio.

As experiências traumáticas, por exemplo, são potentes catalisadores de Devir na subjetividade. Embora dolorosas, elas podem forçar o indivíduo a reavaliar sua identidade, suas crenças e seus projetos de vida, levando a profundas transformações. A resiliência, a capacidade de se recuperar e se adaptar diante da adversidade, é um exemplo da força do Devir psicológico, de como o sujeito pode se reinventar e encontrar novas formas de existir mesmo após rupturas significativas.

A compreensão do Devir na psicologia nos convida a abandonar a ilusão de uma identidade fixa e a abraçar a fluidez e a complexidade do eu. Ao invés de buscar um “verdadeiro eu” imutável, somos convidados a reconhecer que somos um processo contínuo de vir-a-ser, uma obra em andamento. Essa perspectiva não apenas valida a nossa capacidade de mudança, mas também promove a flexibilidade psicológica e a abertura para a experimentação de novas possibilidades, tornando a vida uma jornada de autodescoberta e reinvenção constante.

Devir e conhecimento: o que significa aprender e desaprender?

A relação entre Devir e conhecimento é vital, transformando a própria concepção de como adquirimos e processamos informações. Se o Devir postula a impermanência e a fluidez, então o conhecimento não pode ser visto como um corpo estático de verdades absolutas a ser meramente acumulado. Ao contrário, o conhecimento se revela um processo dinâmico de construção e desconstrução, onde aprender e desaprender são faces inseparáveis de um mesmo Devir epistemológico. A verdade não é algo a ser encontrado, mas algo a ser continuamente produzido e reavaliado.

Aprender, sob a ótica do Devir, não é apenas absorver novas informações, mas transformar-se no processo de aquisição. É a capacidade de estabelecer novas conexões, de reorganizar conceitos preexistentes e de permitir que o novo afete e remodele a própria estrutura cognitiva. O conhecimento é, portanto, um processo ativo e criativo, onde o sujeito cognoscente e o objeto de conhecimento estão em uma interação incessante de Devir mútuo. Cada aprendizado muda a lente pela qual vemos o mundo.

O desaprender é tão crucial quanto o aprender. Em um mundo de Devir acelerado, antigas certezas e paradigmas podem se tornar obsoletos, ou até mesmo prejudiciais. Desaprender implica a coragem de questionar o que se sabe, de abandonar preconceitos e de abrir mão de formas de pensar que já não servem mais. É um processo de desterritorialização do conhecimento, que nos permite liberar espaço para o novo, para a emergência de novas perspectivas e compreensões. Essa é uma habilidade essencial para navegar a complexidade contemporânea.

O conhecimento é sempre provisório, contextual e relacional. Não há uma “verdade final” no Devir, mas multiplicidades de verdades que se manifestam e se transformam em diferentes configurações. Isso desafia o dogmatismo e o fundamentalismo, convidando a uma postura de humildade intelectual e de abertura ao diálogo. A ciência, nesse sentido, é um Devir contínuo, onde teorias são propostas, testadas e, se necessário, falseadas e substituídas por novas, em um fluxo incessante de investigação.

A experiência do erro é fundamental para o Devir do conhecimento. O erro não é um fracasso, mas uma oportunidade para desaprender o que não funciona e para recalibrar o curso do aprendizado. É através do questionamento e da falha que novas descobertas são feitas, e que o conhecimento avança. A perfeição não é o objetivo, mas a capacidade de adaptação e de reinvenção contínua do saber, um processo sem fim de refinamento e expansão.

A educação, sob essa ótica, não é a mera transmissão de conteúdo, mas um incentivo ao Devir do pensamento. Ela deve fomentar a curiosidade, a capacidade crítica e a habilidade de questionar e de criar, mais do que a simples memorização de fatos. A meta é formar indivíduos capazes de navegar pela incerteza e de se adaptar a um mundo em constante transformação, desenvolvendo uma mentalidade de crescimento e de lifelong learning, sempre em Devir.

Assim, o Devir do conhecimento nos convida a uma postura ativa e engajada com o saber. Não se trata de uma busca por uma ilha de estabilidade, mas de uma navegação contínua pelos oceanos da informação e da experiência. Aprender é se lançar no fluxo, desaprender é soltar as amarras do que não serve mais, e a própria verdade é a dança incessante entre esses dois movimentos, uma busca infinita de significados que nunca se fixam de forma definitiva.

Qual o papel do corpo no processo de Devir?

O corpo, longe de ser uma mera máquina biológica ou um invólucro passivo da mente, desempenha um papel central e ativo no processo de Devir. É através e no corpo que as forças do Devir se manifestam mais visceralmente, constituindo a nossa primeira e mais fundamental geografia existencial. Para pensadores como Nietzsche, Bergson, e especialmente Deleuze e Guattari, o corpo é a arena privilegiada onde se desdobram as transformações, as potências e as linhas de fuga que compõem o vir-a-ser.

Em sua concepção mais radical, o corpo não é uma entidade fixa e orgânica, mas um “corpo sem órgãos” (CsO) – um conceito de Deleuze e Guattari que representa a resistência do corpo à organização hierárquica e à estratificação. O CsO não é um corpo doente ou mutilado, mas o corpo em sua pura potência de Devir, antes de ser moldado por normas sociais, disciplinares ou orgânicas. É o campo de intensidades, de fluxos e de conexões que se abrem para novas experimentações e para o abandono de identidades predefinidas.

O Devir corporal manifesta-se constantemente na nossa existência diária. Nossos corpos envelhecem, adoecem, se recuperam, se adaptam a novos ambientes e atividades. O simples ato de andar, de dançar, de praticar um esporte ou de realizar um trabalho manual envolve uma contínua remodelação de nossos músculos, nervos e percepções. Cada experiência corporal é um Devir, uma reconfiguração das nossas capacidades de sentir e de interagir com o mundo, em um fluxo incessante.

As experiências sensoriais são Devires. O cheiro que nos transporta a um passado, o toque que altera nossa pele, o som que nos imerge em um estado de espírito – todos são exemplos de como o corpo é um portal para a transformação. A alimentação, a respiração, o sono, o sexo – cada uma dessas funções biológicas não é apenas manutenção, mas um processo de Devir, de incorporação e de expurgo, de renovação e de metamorfose contínuas, moldando a nossa própria materialidade.

O corpo também é um território de agenciamentos, onde forças sociais, políticas e culturais se inscrevem e são resistidas. As normas de gênero, as expectativas de beleza, as disciplinas do trabalho – tudo isso tenta fixar o corpo em certas formas, mas o corpo, em seu Devir intrínseco, sempre encontra maneiras de se desviar, de resistir e de criar novas linhas de fuga. A moda, as tatuagens, as modificações corporais são exemplos de como os indivíduos buscam ativamente o Devir de seus próprios corpos, expressando uma potência de diferenciação.

O Devir-corpo é, portanto, uma afirmação da plasticidade e da multiplicidade da existência. É o reconhecimento de que o corpo não é uma prisão, mas um veículo para a experimentação e para a criação de novas sensações, novos afetos e novas formas de vida. A saúde e a doença, por exemplo, são estados de Devir, onde o corpo está em constante equilíbrio ou desequilíbrio, sempre buscando uma nova composição de forças.

Em suma, o corpo é o locus do Devir mais íntimo e palpável. É a partir dele que experimentamos o mundo em seu fluxo e que, por sua vez, nos transformamos. Ao abraçar o papel do corpo no Devir, somos convidados a uma reconexão com nossa própria materialidade e a uma valorização de suas potências. A vida é, fundamentalmente, uma dança corporal de transformações, onde cada gesto, cada respiração, cada sensação é uma manifestação do eterno vir-a-ser, uma experiência de fusão com o fluxo vital.

A experiência do Devir no contexto digital e tecnológico.

O contexto digital e tecnológico contemporâneo amplifica e reconfigura a experiência do Devir de maneiras sem precedentes. A internet, as redes sociais, a inteligência artificial e a realidade virtual não são apenas ferramentas, mas ambientes de Devir onde identidades, informações e realidades são constantemente criadas, desfeitas e reinventadas em um fluxo acelerado e hiperconectado. A fluidez que antes era característica de processos mais lentos, agora se manifesta em tempo real e em escala global, exigindo uma capacidade de adaptação contínua.

As identidades digitais são um exemplo notável do Devir no ciberespaço. Perfis em redes sociais, avatares em jogos, pseudônimos em fóruns – todos são construções fluidas que podem ser alteradas, multiplicadas ou abandonadas com uma facilidade sem precedentes. Diferente da identidade “offline”, que parece mais fixa, a identidade digital é um projeto em constante Devir, que se manifesta na curadoria de imagens, na linguagem utilizada e nas interações efêmeras. Essa plasticidade identitária é um reflexo direto do fluxo digital.

A própria informação está em constante Devir. Notícias são atualizadas minuto a minuto, conhecimentos são corrigidos e expandidos em tempo real (como na Wikipedia), e novas narrativas surgem e se popularizam em questão de horas. A ideia de um corpo fixo de conhecimento é substituída por um fluxo incessante de dados e interpretações, onde a verdade é negociada em um Devir informacional. Essa dinâmica exige uma vigilância crítica constante e a capacidade de desaprender rapidamente.

As tecnologias digitais também promovem o Devir das relações sociais. Amizades e comunidades se formam e se desfazem em plataformas online, relações profissionais se estabelecem e se rompem com a mesma velocidade de um clique. A geografia das interações se expande, conectando pessoas de diferentes partes do mundo, criando agenciamentos globais que são fluidos e adaptáveis. O Devir das interações virtuais desafia as noções tradicionais de proximidade e distância, criando um tecido social em constante efervescência.

A tabela a seguir ilustra o Devir em diferentes aspectos do contexto digital:

A experiência do Devir no digital também levanta questões sobre a autenticidade e a profundidade das conexões. Embora a fluidez possa ser libertadora, a constante transformação e a ausência de fixidez podem levar a uma sensação de superficialidade ou de esgotamento. O paradoxo do Devir digital é que, ao nos permitir ser múltiplos e nos reinventarmos, ele também pode nos dispersar em um mar de possibilidades, dificultando a construção de sentido duradouro.

No entanto, a tecnologia, ao acelerar e visibilizar o Devir, também nos oferece ferramentas para compreendê-lo e para agir dentro dele. A capacidade de analisar grandes volumes de dados, de simular cenários complexos e de criar realidades imersivas pode nos ajudar a navegar pelo fluxo de forma mais consciente e intencional. O Devir tecnológico é um convite para reimaginar a nossa relação com o tempo, o espaço e a identidade, forçando-nos a abraçar a impermanência como a nova normalidade e a nos tornarmos mestres da adaptação no fluxo digital.

Devir e a natureza: a dinâmica dos ecossistemas e da vida.

A natureza, em suas mais diversas manifestações, é talvez a encarnação mais evidente e primordial do conceito de Devir. Desde as vastas escalas geológicas, onde montanhas se erguem e oceanos se formam e recuam, até os processos microscópicos da vida, onde células nascem e morrem, a natureza é um fluxo incessante de transformação. Os ecossistemas são sistemas dinâmicos, não estáticos, que estão em constante Devir através de ciclos de vida e morte, de crescimento e decomposição, de interações complexas e imprevisíveis.

A evolução biológica é o exemplo máximo do Devir na vida. Espécies surgem, se diversificam, se adaptam a novos ambientes e, eventualmente, se extinguem, em um processo contínuo de seleção natural e mutação. A vida na Terra é um longo e ininterrupto Devir, uma cadeia de transformações que atravessa milhões de anos, onde cada forma de vida é um elo temporário em um fluxo maior de emergência e dissolução. Não há um ponto final, apenas a continuação incessante da vida em suas múltiplas formas.

Os ciclos biogeoquímicos, como o ciclo da água, do carbono ou do nitrogênio, demonstram o Devir em uma escala planetária. Elementos e compostos se transformam, mudam de estado e de localização, sendo constantemente reciclados pelos processos naturais. A água evapora, forma nuvens, precipita-se como chuva, escoa em rios e oceanos, em um Devir hidrológico sem fim. Essa dança de elementos é o que sustenta a vida, um processo vital de renovação contínua.

A ecologia dos ecossistemas é profundamente marcada pelo Devir. Florestas crescem, são perturbadas por incêndios ou inundações, e então se regeneram em um novo estado de equilíbrio dinâmico. Populações de animais aumentam e diminuem, espécies migram, e a biodiversidade se altera em resposta a pressões ambientais. O Devir aqui é a própria capacidade de resiliência e adaptação dos sistemas vivos, a sua habilidade de se reconfigurar diante das mudanças, mantendo sua vitalidade em movimento.

Até mesmo as formações geológicas, que parecem tão sólidas e imutáveis, estão em Devir. As placas tectônicas se movem lentamente, gerando terremotos e vulcões; rios erodem montanhas e depositam sedimentos, alterando a paisagem. O Devir geológico é um processo de escalas de tempo imensas, que revela a impermanência de tudo, mesmo do que é percebido como eterno. O planeta em si é um corpo em Devir, em constante transformação interna e externa.

O impacto humano na natureza é uma manifestação complexa do Devir. Nossas ações aceleram, desviam ou interrompem processos naturais, levando a transformações ambientais em ritmo sem precedentes. A crise climática é um exemplo do Devir acelerado e desordenado imposto pela atividade humana, onde o clima do planeta está em um vir-a-ser imprevisível e potencialmente catastrófico. Essa interrupção nos Devires naturais exige uma reflexão profunda sobre nossa responsabilidade no fluxo da vida.

Reconhecer o Devir na natureza nos convida a uma relação de maior humildade e respeito com o meio ambiente. Ao invés de tentar controlar e dominar a natureza, somos convidados a nos integrar em seus fluxos, a entender suas dinâmicas e a buscar uma convivência mais harmônica com suas transformações. A natureza nos ensina que a vida é um processo contínuo de emergência e dissolução, e que a resiliência está na capacidade de se adaptar e fluir com as mudanças, sem apego a formas fixas, vivendo o eterno ciclo de nascer e morrer.

Quais são os principais equívocos sobre o Devir?

A profundidade e a radicalidade do conceito de Devir frequentemente levam a equívocos e mal-entendidos, especialmente quando ele é contrastado com noções mais tradicionais de ser, identidade e estabilidade. Superar esses equívocos é crucial para apreender a verdadeira força transformadora do Devir. Um dos erros mais comuns é confundi-lo com uma simples mudança linear ou com o progresso, ignorando sua natureza multifacetada e complexa, que transcende a mera sucessão temporal.

Um equívoco central é considerar o Devir como um sinônimo de caos absoluto ou falta de ordem. Embora o Devir implique a dissolução de formas fixas e a imprevisibilidade, isso não significa ausência total de estrutura. Para Heráclito, por exemplo, o Devir é governado pelo logos, um princípio de inteligibilidade que organiza o próprio fluxo e a tensão dos opostos. Em Deleuze e Guattari, há um “plano de consistência” onde os agenciamentos do Devir ocorrem, revelando uma lógica interna de transformação, uma dança coreografada.

Outro erro é interpretar o Devir como um mero relativismo ou niilismo, onde “tudo vale” ou “nada importa” porque nada é fixo. Pelo contrário, muitos filósofos do Devir, como Nietzsche, propõem uma reavaliação de todos os valores, não sua anulação, buscando uma ética afirmativa da vida e da potência criativa. O Devir não esvazia o sentido, mas nos desafia a construí-lo e a reconstruí-lo continuamente, em um processo ativo de significação que não se apoia em fundamentos externos.

Confundir Devir com evolução linear progressiva também é um equívoco. Embora o Devir possa envolver progresso em certos contextos (como na tecnologia), sua essência não é a de um movimento unidirecional rumo a um estado “melhor” ou mais “evoluído”. O Devir nietzschiano, por exemplo, é cíclico e sem fim, uma dança sem telos. Ele pode envolver retornos, involuções, rupturas e desvios que não se encaixam em uma narrativa de progresso, revelando uma complexidade não-linear.

A ideia de que o Devir implica a perda total de identidade é outro ponto de confusão. Em vez de aniquilar a identidade, o Devir a reconcebe como algo fluido e construído, um efeito temporário de agenciamentos e forças. Não se trata de “não ser nada”, mas de ser múltiplo, rizomático e em constante reconfiguração. A identidade não desaparece, mas se torna um “vir-a-ser” em vez de um “ser” fixo, uma plasticidade existencial.

A lista a seguir resume alguns equívocos comuns sobre o Devir:

• Devir é o mesmo que progresso: Nem todo Devir implica melhoria ou avanço linear.
• Devir é sinônimo de caos total: Há uma lógica e padrões no fluxo, mesmo que não sejam fixos.
• Devir leva ao relativismo/niilismo: Não é ausência de sentido, mas reavaliação e construção contínua de sentido.
• Devir significa perda de identidade: A identidade se torna fluida e múltipla, não aniquilada.
• Devir é uma transição para um novo ser: O Devir não é um meio para um fim, mas um processo em si, sem parada.
• Devir é puramente individual: É sempre o resultado de agenciamentos e forças que atravessam o coletivo.

Ademais, pensar o Devir como uma transição de um estado A para um estado B, como se fosse um caminho para um novo “ser” definitivo, também é um erro. O Devir é o próprio processo contínuo, sem um ponto final. Ele não é uma passagem, mas a permanência na zona de indeterminação, na potência da transformação em si mesma. É a dança contínua, e não a chegada a um destino fixo, que define a sua essência vibrante.

Ao desmistificar esses equívocos, abrimos caminho para uma compreensão mais rica e matizada do Devir, reconhecendo sua capacidade de desestabilizar e criar, de dissolver formas antigas e de gerar novas possibilidades. O Devir não é um conceito para nos desorientar, mas para nos orientar na fluidez da existência, cultivando uma sabedoria que abraça a impermanência e a multiplicidade como condições intrínsecas do real.

Como podemos cultivar uma atitude de Devir em nossa vida?

Cultivar uma atitude de Devir na vida não significa viver em constante turbulência ou ignorar a necessidade de estabilidade. Significa, antes, desenvolver uma sensibilidade para o fluxo, uma capacidade de navegar pela impermanência e de se engajar ativamente na própria transformação e na do mundo. É uma postura existencial consciente que nos permite abraçar a criatividade inerente ao vir-a-ser, sem nos fixarmos em identidades ou certezas rígidas. Trata-se de uma aprendizagem contínua de adaptação e reinvenção.

Primeiramente, é fundamental desenvolver a consciência da impermanência. Reconhecer que tudo flui – desde as emoções e pensamentos até as relações e as circunstâncias externas – ajuda a diminuir a resistência à mudança. Ao invés de lutar contra o fluxo, podemos aprender a observá-lo, a entendê-lo e a nos mover com ele. A prática da atenção plena (mindfulness) pode ser uma ferramenta poderosa para cultivar essa percepção do momento presente em seu constante Devir, sem julgamento.

Uma atitude de Devir também envolve a flexibilidade e a adaptabilidade. Em vez de nos apegarmos rigidamente a planos ou expectativas, podemos aprender a nos ajustar e a encontrar novas soluções diante de imprevistos. Isso não significa ausência de propósito, mas a disposição para reajustar o curso, para encontrar novas rotas quando o caminho original se fecha. A capacidade de improvisar e de lidar com o inesperado é uma virtude do Devir.

A experimentação e a curiosidade são pilares dessa atitude. Estar aberto a novas experiências, a aprender coisas novas, a testar diferentes abordagens para os problemas e a explorar diferentes facetas de si mesmo é essencial. A vida se torna um laboratório onde somos tanto cientistas quanto cobaias, constantemente testando os limites e as potencialidades do vir-a-ser. É uma busca ativa por novidade e por expansão de horizontes.

A lista a seguir apresenta práticas para cultivar uma atitude de Devir:

• Desapego de Resultados Rígidos: Focar no processo e na experiência, e não apenas no resultado final.
• Aceitação da Incerteza: Confortar-se com o não saber e com a imprevisibilidade do futuro.
• Desconstrução de Crenças Limitantes: Questionar velhas verdades e abrir-se a novas perspectivas.
• Cultivo da Curiosidade: Manter a mente aberta para o aprendizado contínuo e a experimentação.
• Fluidez nas Relações: Aceitar que as relações evoluem e se transformam, e estar presente para essa dinâmica.
• Reconhecimento da Criatividade Intrínseca: Ver-se como um co-criador da própria realidade em Devir.

Essa atitude também se manifesta na capacidade de desaprender. Muitas vezes, para que o novo possa surgir, é preciso abandonar velhos hábitos, crenças e identidades que já não nos servem mais. É um processo de luto e liberação, que permite a reconfiguração do eu e a abertura para novas possibilidades. Desaprender é um ato de coragem que libera o espaço para um Devir mais autêntico e significativo, uma limpeza do campo para o que há de vir.

Por fim, cultivar uma atitude de Devir é um convite à criatividade. Ao invés de buscar a perfeição em um modelo pré-estabelecido, somos convidados a nos tornarmos artistas da própria vida, a inventar, a improvisar, a moldar nossa existência de forma única e original. A vida não é uma receita a ser seguida, mas uma obra de arte em andamento, um processo de criação contínua onde somos o material e o escultor, sempre em fluxo e transformação.

Adotar uma atitude de Devir é, em última análise, um caminho de empoderamento. Ele nos liberta da ilusão do controle total e nos conecta com a vastidão e a vitalidade da própria existência. Ao invés de sermos vítimas da mudança, nos tornamos participantes ativos e conscientes do fluxo, capazes de encontrar beleza e sentido na impermanência. A vida se transforma em uma aventura de descobertas e reinvenções, um processo incessante de florescimento.

Bibliografia

• Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol. 1. Editora 34, 1995.
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• Aristóteles. Metafísica. (Diversas edições).
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• Bourdieu, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. Edusp, 2007.