Etnomusicologia: o que é, significado e exemplos

O que define a etnomusicologia como disciplina acadêmica?

A etnomusicologia emerge como um campo de estudo que transcende a mera análise da música em suas formas mais convencionais, buscando compreender a música como um fenômeno cultural profundamente enraizado na vida humana. Ela se distingue por sua abordagem holística, que integra perspectivas da antropologia, sociologia, linguística e, evidentemente, da musicologia, para explorar as complexas relações entre som, cultura e sociedade. Mais do que decifrar partituras ou categorizar gêneros, a disciplina se dedica a entender o significado social e cultural da música, como ela é criada, performada, percebida e transmitida dentro de contextos específicos. Sua natureza interdisciplinar permite uma investigação profunda das práticas musicais em uma vasta gama de comunidades ao redor do mundo, revelando a diversidade inerente às expressões sonoras humanas.

Diferentemente da musicologia histórica, que muitas vezes se concentra em tradições musicais ocidentais e em obras de compositores renomados, a etnomusicologia amplia seu escopo para abarcar todas as manifestações musicais, independentemente de sua origem geográfica, sistema de notação ou reconhecimento canônico. Este campo de estudo abraça tanto as tradições orais quanto as escritas, as performances rituais quanto as seculares, os sons de grupos indígenas quanto os de comunidades urbanas contemporâneas. A pesquisa etnomusicológica frequentemente envolve uma imersão profunda no ambiente cultural dos participantes, sublinhando a importância da perspectiva nativa para a compreensão dos sistemas musicais e seus contextos. É uma disciplina que valoriza a riqueza das expressões sonoras não ocidentais e marginalizadas, conferindo-lhes o devido reconhecimento acadêmico e cultural.

A pesquisa em etnomusicologia não se restringe à descrição de estruturas musicais; ela investiga o papel da música na construção de identidades, na transmissão de conhecimentos, na negociação de poder e na expressão de emoções coletivas. Os etnomusicólogos procuram desvendar como a música funciona como um sistema de comunicação simbólica, refletindo e moldando valores, crenças e estruturas sociais. A disciplina se interessa por questões como a performance musical em rituais de cura, o uso da música em protestos sociais, a intersecção entre música e religião, ou a forma como a música se adapta e se transforma em cenários de migração e globalização. A profundidade dessa investigação exige uma sensibilidade aguçada para os nuances culturais e uma disposição para ir além das categorias musicais pré-estabelecidas.

A etnomusicologia é inerentemente comparativa, embora não no sentido de hierarquizar tradições musicais, mas sim de identificar padrões transculturais e particularidades em diversas culturas. Ela busca entender o que é universal na experiência musical humana e o que é culturalmente específico, permitindo uma apreciação mais rica da tapeçaria sonora do mundo. O trabalho de campo, que muitas vezes inclui a participação ativa em eventos musicais e a realização de entrevistas com músicos e membros da comunidade, é uma metodologia fundamental, fornecendo dados primários e uma compreensão contextualizada que não pode ser obtida apenas por meio de gravações ou textos. A observação participante torna-se uma ferramenta indispensável para capturar a vivacidade e o dinamismo da música em seu ambiente natural.

A dimensão ética também é central para a etnomusicologia, uma vez que o pesquisador frequentemente lida com conhecimentos tradicionais e patrimônios culturais de comunidades vulneráveis. A disciplina enfatiza a importância da colaboração recíproca e do respeito às comunidades estudadas, buscando práticas de pesquisa que sejam eticamente responsáveis e beneficiem os participantes. Isso inclui considerações sobre a propriedade intelectual de expressões musicais, a representação adequada das vozes dos nativos e a devolução dos resultados da pesquisa às comunidades de forma acessível e significativa. A preocupação com a justiça social e a equidade permeia muitas das abordagens etnomusicológicas contemporâneas, moldando a maneira como o trabalho é conduzido e disseminado.

Em sua essência, a etnomusicologia é um convite à escuta atenta e à compreensão profunda das diversas formas pelas quais os seres humanos organizam e atribuem sentido ao som. Ela desafia noções etnocêntricas sobre a música, promovendo uma visão mais inclusiva e plural do universo sonoro. Ao desvendar as lógicas internas das culturas musicais e as conexões entre som e vida social, a etnomusicologia não apenas enriquece nosso conhecimento sobre a música, mas também aprofunda nossa compreensão da própria humanidade. A disciplina, assim, se estabelece como um campo dinâmico e essencial para os estudos culturais e para a preservação do patrimônio imaterial global, continuamente expandindo suas fronteiras e metodologias para abraçar novos fenômenos e perspectivas.

Qual a origem e o desenvolvimento histórico da etnomusicologia?

A etnomusicologia, como a conhecemos hoje, possui uma história multifacetada que se ramifica de diversas disciplinas precursoras, como a musicologia comparada, a antropologia e a folklorística. Seus primórdios podem ser rastreados ao final do século XIX, quando pesquisadores europeus começaram a registrar e analisar músicas de culturas não ocidentais, muitas vezes motivados por um interesse em catalogar o “exótico” ou o “primitivo”. Figuras como Carl Stumpf, com seu trabalho no arquivo fonográfico de Berlim, e Erich von Hornbostel, que desenvolveu um sistema de classificação de instrumentos musicais (Hornbostel-Sachs), foram pioneiros na coleta sistemática de materiais sonoros e na formulação de métodos comparativos. Este período inicial, conhecido como musicologia comparada, estabeleceu as bases para a transcrição e análise de melodias e ritmos de diversas partes do mundo, embora frequentemente com uma perspectiva evolucionista e eurocêntrica.

O termo “etnomusicologia” só foi cunhado em 1950 por Jaap Kunst, um musicólogo holandês que sentiu a necessidade de uma designação mais precisa para o campo que se dedicava ao estudo da música de “povos não ocidentais e primitivos”. Antes disso, o campo era comumente referido como musicologia comparada ou música de povos exóticos. A transição da musicologia comparada para a etnomusicologia marcou uma mudança crucial de paradigma. Enquanto a musicologia comparada tendia a focar nas características puramente musicais (escalas, ritmos, formas), a etnomusicologia começou a enfatizar o contexto cultural da música, reconhecendo que a melodia e o ritmo são inseparáveis dos valores, crenças e práticas sociais de uma comunidade. Essa virada antropológica representou um avanço significativo, aproximando o estudo da música da etnografia.

Nas décadas de 1950 e 1960, a disciplina floresceu nos Estados Unidos, impulsionada por figuras como Alan P. Merriam, que publicou “The Anthropology of Music” (1964), um texto seminal que delineou o escopo e a metodologia do campo. Merriam argumentou vigorosamente que a música deve ser estudada não apenas como um sistema sonoro, mas como um componente integral da cultura, influenciado e influenciando outros aspectos da vida social. Ele propôs um modelo tripartido para a análise da música: conceito (o que as pessoas pensam sobre a música), comportamento (como as pessoas agem em relação à música) e som (a própria música). Essa estrutura ajudou a solidificar a etnomusicologia como uma disciplina que integra a análise musical com o estudo etnográfico aprofundado.

A década de 1970 testemunhou uma crescente reflexão crítica dentro da etnomusicologia, com pesquisadores questionando as implicações do colonialismo e do eurocentrismo nas práticas de pesquisa. Houve uma maior ênfase na perspectiva dos próprios músicos e comunidades, e um reconhecimento da necessidade de ir além da mera descrição para abordar questões de poder, representação e política cultural. A ideia de que o etnomusicólogo deveria se tornar um advogado cultural ou um participante ativo na comunidade estudada ganhou força, desviando-se da postura mais distanciada e “objetiva” dos primeiros pesquisadores. Essa fase da disciplina valorizou a polifonia de vozes e a complexidade das interações sociais que moldam a produção musical.

A etnomusicologia contemporânea é marcada por sua diversidade teórica e metodológica. Ela se engaja com teorias pós-modernas, pós-coloniais e feministas, explorando temas como identidade, gênero, diáspora, performance, globalização e a intersecção entre música e tecnologia. O campo tem se tornado cada vez mais reflexivo sobre sua própria posição e os impactos de sua pesquisa nas comunidades que estuda. O trabalho de campo continua sendo um pilar, mas agora é complementado por abordagens de arquivo, estudos de mídia e pesquisa online, refletindo a natureza em constante evolução da música e das interações humanas. A disciplina, portanto, não apenas documenta, mas também se posiciona criticamente em relação às dinâmicas culturais globais.

A expansão geográfica dos estudos etnomusicológicos também é notável. Enquanto no início o foco era predominantemente em culturas não ocidentais “exóticas”, hoje a etnomusicologia estuda a música em qualquer parte do mundo, incluindo as culturas urbanas ocidentais, as subculturas e as diásporas. Isso reflete uma compreensão de que toda música é culturalmente situada e que todas as comunidades possuem sistemas musicais ricos e dignos de estudo. A disciplina se tornou menos sobre “eles” (os outros) e mais sobre a experiência musical humana universal em suas infinitas variações. A história da etnomusicologia é, em si mesma, uma trajetória de autodescoberta e de refinamento conceitual, refletindo as mudanças mais amplas nos estudos culturais e nas ciências sociais.

A evolução da etnomusicologia também se manifesta na crescente ênfase na prática e na criação musical. Muitos etnomusicólogos agora combinam a pesquisa acadêmica com a performance musical, a composição ou o engajamento em projetos de revitalização cultural. Essa abordagem “prática” não apenas aprofunda a compreensão empírica, mas também fortalece os laços com as comunidades, permitindo uma troca mais fluida de conhecimentos. A etnomusicologia continua a se reinventar, adaptando-se aos novos desafios e oportunidades do século XXI, mantendo sua relevância como um campo vibrante dedicado à compreensão integral da música em seu contexto mais amplo, e abraçando a inovação metodológica e a colaboração transdisciplinar para abordar fenômenos musicais complexos.

Quais são os principais paradigmas teóricos que moldaram a etnomusicologia?

A etnomusicologia, desde seus primórdios como musicologia comparada, foi moldada por uma série de paradigmas teóricos distintos que influenciaram profundamente a forma como a música é abordada e interpretada. No início, predominou uma perspectiva evolucionista, que via as culturas musicais não ocidentais como estágios primitivos na evolução da música, culminando na complexidade da música ocidental. Essa abordagem, embora hoje seja amplamente rejeitada por seu caráter etnocêntrico e hierárquico, foi fundamental para as primeiras coletas de dados e para a formulação de sistemas classificatórios de instrumentos e escalas. A escola alemã de musicologia comparada, com figuras como Carl Stumpf e Erich von Hornbostel, exemplifica essa fase inicial, focando na taxonomia e na comparação formal das estruturas musicais.

Com a virada para a etnomusicologia propriamente dita, nos anos 1950 e 1960, o paradigma funcionalista-estruturalista ganhou proeminência. Influenciado pela antropologia funcionalista (Malinowski, Radcliffe-Brown) e estruturalista (Lévi-Strauss), esse paradigma via a música como um sistema que desempenha funções específicas dentro de uma cultura, contribuindo para a coesão social e a manutenção das estruturas existentes. Alan P. Merriam é um dos principais expoentes dessa abordagem, que buscava identificar as relações sistemáticas entre o som musical, o comportamento musical e o conceito musical em uma dada cultura. A música era entendida não apenas em termos de suas propriedades acústicas, mas como um elemento intrínseco e funcional da vida social, refletindo e reforçando os valores culturais de uma comunidade. Este paradigma impulsionou o trabalho de campo intensivo e a observação participante.

A partir da década de 1970, o paradigma interpretativo ou simbólico começou a ganhar terreno, inspirado pela antropologia interpretativa de Clifford Geertz. Esse enfoque deslocou a atenção da função para o significado, buscando compreender a música como um sistema de símbolos e significados que são culturalmente construídos e interpretados pelos próprios participantes. A etnomusicologia interpretativa se concentra em como a música veicula e negocia significados, emoções e identidades, muitas vezes através de uma análise densa de performances e rituais específicos. Pesquisadores como Steven Feld, com seu trabalho sobre os Kaluli de Papua Nova Guiné, exemplificam essa abordagem, explorando as conexões profundas entre o som, o ambiente e a cosmologia de um povo. A compreensão em profundidade das perspectivas nativas e a subjetividade do pesquisador tornaram-se elementos cruciais neste período.

O paradigma crítico ou pós-colonial emergiu nas décadas de 1980 e 1990, impulsionado por uma reflexão sobre as dinâmicas de poder inerentes à pesquisa acadêmica e às relações globais. Este enfoque questiona as narrativas hegemônicas, as representações orientalistas e as estruturas coloniais que historicamente moldaram a disciplina. Ele se interessa por como a música é usada para resistir à opressão, expressar identidades diaspóricas e negociar relações de poder em contextos pós-coloniais. Temas como apropriação cultural, hibridismo, identidade nacional e globalização são explorados sob uma lente crítica, revelando as complexidades políticas das práticas musicais. Este paradigma enfatiza a necessidade de uma pesquisa eticamente engajada e politicamente consciente, priorizando a justiça social e a autodeterminação das comunidades estudadas.

Mais recentemente, o paradigma da performance e da corporeidade tem ganhado destaque, colocando a experiência encarnada da música no centro da análise. Inspirado nos estudos de performance (Richard Schechner, Victor Turner) e na antropologia do corpo, este enfoque reconhece que a música é um evento dinâmico e interativo, que envolve não apenas o som, mas também o movimento, a gestualidade, a emoção e a interação entre performers e público. A performance é vista como um local privilegiado para a construção e negociação de significado, identidade e experiência. Pesquisadores exploram como a materialidade do som e do corpo se entrelaçam na produção de significado, revelando as dimensões sensoriais e afetivas da experiência musical. A improvisação e a espontaneidade na performance tornam-se objetos de estudo particularmente interessantes.

Outro paradigma emergente é o ecológico ou sonoro, que expande a análise musical para além das fronteiras estritas da música como artefato, incluindo paisagens sonoras e ecologias acústicas. Este enfoque, influenciado pelos estudos de som (R. Murray Schafer) e pela ecologia, considera como o ambiente sonoro natural e construído afeta e é afetado pelas práticas musicais humanas. A etnomusicologia ecológica examina a interrelação entre música, ambiente e bem-estar, explorando como as comunidades se relacionam com seu entorno sonoro e como as mudanças ambientais impactam as tradições musicais. Esta perspectiva ressalta a interconexão intrínseca entre o som, o lugar e a cultura, propondo uma escuta mais ampla e inclusiva do mundo. A preservação de paisagens sonoras ameaçadas é uma preocupação crescente.

A etnomusicologia contemporânea não se prende a um único paradigma, mas frequentemente emprega uma abordagem eclética e multifacetada, combinando elementos de diferentes estruturas teóricas para abordar a complexidade da experiência musical. Essa flexibilidade reflete a natureza dinâmica da música e das culturas que a produzem, bem como a crescente interdisciplinaridade do campo. A constante inovação teórica permite que os etnomusicólogos respondam aos novos desafios e questões que emergem em um mundo globalizado e em rápida transformação, garantindo que a disciplina permaneça relevante e perspicaz na compreensão das infindáveis manifestações sonoras da humanidade.

Como a etnomusicologia se distingue da musicologia tradicional?

A etnomusicologia e a musicologia tradicional, embora ambas se dediquem ao estudo da música, divergem fundamentalmente em seus objetos de estudo, metodologias e pressupostos conceituais, criando campos de investigação distintos e complementares. A musicologia tradicional, muitas vezes referida como musicologia histórica ou sistemática, tem suas raízes firmemente plantadas na tradição acadêmica ocidental. Seu foco principal historicamente tem sido a música erudita ocidental, desde o período medieval até a contemporaneidade, com uma ênfase particular na composição, na análise formal de partituras e na biografia de grandes compositores. A análise estrutural, a harmonia, a contraponto e a forma musical são elementos centrais de sua investigação, buscando compreender a evolução e a estética das obras dentro de um cânone pré-estabelecido.

Em contraste, a etnomusicologia surge de uma perspectiva antropológica e sociológica, visando estudar a música em todos os seus contextos culturais, transcendo as fronteiras geográficas e os cânones estilísticos. Ela se interessa por qualquer forma de expressão sonora organizada que uma comunidade reconheça como música, seja ela uma canção de trabalho de uma tribo amazônica, o jazz de Nova Orleans, o hip-hop de um bairro urbano, ou as práticas musicais de uma diáspora global. A etnomusicologia não se restringe à música ocidental, nem àquela que é formalmente composta ou notada; ela valoriza a tradição oral, a performance espontânea e a música do cotidiano como fontes ricas de conhecimento. Essa amplitude de escopo é uma das distinções mais marcantes.

A metodologia é outro ponto crucial de divergência. A musicologia tradicional frequentemente se baseia na análise de documentos escritos, partituras, tratados e registros históricos, realizando pesquisas em arquivos e bibliotecas. O trabalho de gabinete é predominante, e o acesso direto aos criadores ou executantes pode ser limitado pelo tempo. A etnomusicologia, por outro lado, prioriza o trabalho de campo, a observação participante e a interação direta com os músicos e suas comunidades. O etnomusicólogo busca vivenciar a música em seu ambiente natural, compreendendo-a a partir da perspectiva dos participantes. Entrevistas, gravações em campo e a própria imersão cultural são ferramentas indispensáveis, permitindo uma compreensão contextualizada que vai além da estrutura sonora. A experiência vivenciada é um pilar da pesquisa etnomusicológica.

Os pressupostos teóricos também diferem significativamente. A musicologia tradicional muitas vezes aborda a música como uma forma de arte autônoma, focando em sua beleza intrínseca e em sua evolução estética. O conceito de gênio musical e a linearidade do progresso artístico são frequentemente subjacentes a essa visão. Já a etnomusicologia vê a música como um fenômeno cultural inseparável de seu contexto social, político e econômico. Ela questiona a ideia de autonomia artística, argumentando que a música reflete e molda as relações sociais, as identidades e os valores de uma comunidade. A interconexão entre som e sociedade é o cerne da investigação etnomusicológica, que busca desvendar os significados extrínsecos da música.

Enquanto a musicologia tradicional pode se concentrar em questões de autoria, periodização e influência entre compositores, a etnomusicologia explora como a música é transmitida oralmente, como as comunidades atribuem significado coletivo a ela e como ela funciona em rituais, festividades e na vida diária. Questões de performance, improvisação e a relação entre músico e audiência também recebem atenção considerável. A etnomusicologia frequentemente desafia a ideia de uma “obra” musical fixa, reconhecendo a natureza fluida e dinâmica das práticas musicais em muitas culturas. A valorização da variação e da mudança, em vez da busca pela forma “original” ou “pura”, é um traço característico da abordagem etnomusicológica.

O pluralismo cultural é um valor central da etnomusicologia. Enquanto a musicologia tradicional, apesar de seus esforços recentes para se diversificar, ainda pode ser percebida como eurocêntrica em sua base, a etnomusicologia busca intencionalmente descolonizar o estudo da música, dando voz e visibilidade a tradições musicais que foram historicamente marginalizadas ou ignoradas. Ela promove uma escuta ativa e respeitosa da diversidade sonora global, contribuindo para a preservação do patrimônio cultural imaterial e para o diálogo intercultural. A etnomusicologia, assim, age como uma ponte entre culturas, desfazendo hierarquias e revelando a riqueza inerente a cada manifestação musical humana, sem julgamentos prévios de valor ou complexidade. A legitimidade de todas as músicas é um princípio fundamental.

Em suma, a distinção reside menos em uma separação rígida e mais em uma expansão de perspectiva. A etnomusicologia não nega o valor da musicologia tradicional, mas complementa-a ao oferecer uma lente mais ampla e culturalmente sensível para a compreensão do fenômeno musical em sua totalidade. Ambas as disciplinas contribuem para um entendimento mais completo da música, mas a etnomusicologia, com seu foco no contexto, na experiência e na diversidade cultural, oferece uma abordagem inestimável para desvendar as complexas interações entre som e sociedade em escala global. A capacidade de articular a música com as amplas dimensões da vida humana é o que confere à etnomusicologia seu caráter singular e sua relevância contínua no cenário acadêmico atual.

Quais metodologias de pesquisa são centrais para a etnomusicologia?

As metodologias de pesquisa na etnomusicologia são inerentemente diversas e interdisciplinares, refletindo a natureza complexa e multifacetada do seu objeto de estudo. A espinha dorsal da pesquisa etnomusicológica é, sem dúvida, o trabalho de campo, uma prática inspirada na antropologia social. Este envolve a imersão do pesquisador na comunidade que estuda, vivenciando o ambiente cultural, participando de eventos musicais e interagindo diretamente com os praticantes da música. O objetivo é desenvolver uma compreensão profunda e contextualizada da música, que só pode ser alcançada através da experiência vivenciada e da observação em primeira mão. O trabalho de campo não é apenas uma técnica de coleta de dados, mas uma forma de engajamento que molda a perspectiva do pesquisador e a natureza das perguntas formuladas, sendo crucial para a legitimidade dos resultados.

Dentro do trabalho de campo, a observação participante é uma metodologia central. O etnomusicólogo não é um observador passivo, mas um participante ativo na vida musical da comunidade, na medida do possível e apropriado. Isso pode envolver aprender a tocar um instrumento local, participar de rituais ou festividades, ou simplesmente estar presente em ensaios e performances. Essa participação ativa permite uma compreensão mais profunda das nuances da performance, da interação entre músicos, e do significado cultural da música que seria inacessível através de uma observação distante. A imersão cultural ajuda a construir rapport e confiança com os membros da comunidade, facilitando a coleta de dados e a interpretação de significados implícitos. A capacidade de perceber e interpretar sinais não-verbais é aprimorada com a observação participante.

As entrevistas são outra ferramenta metodológica indispensável. Elas permitem que o pesquisador colete informações diretamente dos membros da comunidade sobre suas percepções, crenças, experiências e conhecimentos relacionados à música. As entrevistas podem ser estruturadas, semiestruturadas ou não estruturadas, dependendo dos objetivos da pesquisa e do contexto cultural. É crucial que o etnomusicólogo desenvolva habilidades de escuta ativa e faça perguntas culturalmente sensíveis, permitindo que os entrevistados expressem suas perspectivas de forma autêntica. As narrativas pessoais, as histórias de vida e os depoimentos orais fornecem insights valiosos sobre a produção e recepção musical, complementando a observação direta e os dados sonoros.

A gravação sonora e audiovisual é fundamental para a etnomusicologia. Com o advento de tecnologias de gravação portáteis, os etnomusicólogos podem documentar performances musicais em seu contexto original, preservando-as para análise futura e para o arquivamento. Essas gravações servem como dados primários para a transcrição musical, a análise acústica e a interpretação do contexto performático. A qualidade técnica da gravação é importante, mas mais ainda é a capacidade de capturar a autenticidade da performance e a atmosfera do evento. A documentação visual, por meio de fotografia e vídeo, complementa o registro sonoro, fornecendo informações sobre movimento, gestos, figurinos e a interação social, que são elementos cruciais da experiência musical.

A análise musical, embora não seja o único foco, é uma componente vital da metodologia etnomusicológica. Diferente da análise musicológica tradicional que se baseia em partituras, a análise etnomusicológica frequentemente envolve a transcrição de gravações sonoras para sistemas de notação ocidental ou para sistemas adaptados que capturem as nuances de escalas, ritmos e timbres não ocidentais. Além da transcrição, a análise se estende para a identificação de estruturas melódicas, rítmicas e harmônicas, bem como para a investigação da organização sonora e da estética musical de uma determinada cultura. A análise não é um fim em si mesma, mas um meio para compreender como o som se articula com o significado cultural, utilizando tanto a perspectiva emic (nativa) quanto a perspectiva etic (do pesquisador).

A pesquisa arquivística e bibliográfica também desempenha um papel importante, especialmente para a contextualização histórica e teórica. O etnomusicólogo pode consultar coleções de gravações antigas, manuscritos, diários de campo de pesquisadores anteriores, documentos históricos, literaturas secundárias e artigos acadêmicos para situar sua pesquisa em um quadro mais amplo. Esta fase da pesquisa ajuda a construir uma base sólida de conhecimento pré-existente e a identificar lacunas na literatura, direcionando as questões de pesquisa e refinando as hipóteses. A combinação de dados de campo com informações de arquivo permite uma análise mais robusta e completa, traçando a evolução de práticas musicais ao longo do tempo.

Finalmente, a etnomusicologia contemporânea frequentemente incorpora metodologias híbridas e colaborativas. Isso pode incluir a co-criação de projetos de pesquisa com membros da comunidade, o uso de abordagens de pesquisa-ação participativa, ou a integração de ferramentas digitais e tecnologias de comunicação. A colaboração ética é cada vez mais valorizada, buscando devolver os resultados da pesquisa às comunidades de forma significativa e estabelecer relações de reciprocidade. Essa flexibilidade metodológica permite que os etnomusicólogos se adaptem às complexidades do mundo contemporâneo, onde as práticas musicais são influenciadas pela globalização, pelas mídias digitais e pelas interações transculturais, garantindo que a pesquisa seja sempre relevante e responda aos desafios da modernidade.

Qual o papel do trabalho de campo na etnomusicologia contemporânea?

O trabalho de campo é, sem dúvida, o alicerce metodológico sobre o qual a etnomusicologia contemporânea se apoia, distinguindo-a fundamentalmente de outras abordagens ao estudo da música. Mais do que uma mera técnica de coleta de dados, ele é um processo imersivo e transformador que permite ao pesquisador vivenciar a música em seu contexto social e cultural nativo. Através da observação participante, o etnomusicólogo se engaja diretamente com os músicos e suas comunidades, aprendendo sobre suas práticas, crenças e valores de uma maneira que nenhuma análise de gravação ou partitura pode proporcionar. Esta imersão profunda não apenas facilita a coleta de dados primários, mas também molda a compreensão do pesquisador, revelando nuances e significados que só podem ser apreendidos através da vivência compartilhada.

Historicamente, o trabalho de campo na etnomusicologia evoluiu de uma postura mais extrativista para uma abordagem mais colaborativa e eticamente engajada. Nos primórdios, pesquisadores poderiam ter uma visão de “coleta” de músicas, mas hoje a ênfase recai na construção de relacionamentos e na reciprocidade. O etnomusicólogo busca estabelecer uma relação de confiança com os participantes da pesquisa, reconhecendo-os como coinvestigadores e detentores de conhecimento. Essa mudança reflete uma conscientização sobre as dinâmicas de poder e a necessidade de uma pesquisa que seja benéfica para a comunidade estudada, evitando apropriações e garantindo a representação autêntica das vozes nativas. O respeito pela autonomia cultural e pelos direitos das comunidades é primordial.

Um dos objetivos centrais do trabalho de campo é a obtenção de uma perspectiva emic, ou seja, a compreensão da música a partir do ponto de vista dos próprios membros da cultura. Isso envolve aprender os termos nativos, as classificações, as estéticas e os significados que a música possui para aqueles que a praticam. A capacidade de ouvir, observar e interpretar o comportamento musical dentro de seu contexto cultural permite que o pesquisador vá além da simples descrição sonora para desvendar as complexas redes de significado que permeiam a vida musical. Esta abordagem contrasta com a perspectiva etic, que analisa a música a partir de categorias e conceitos externos, muitas vezes ocidentais, proporcionando uma visão holística e culturalmente informada.

O trabalho de campo também é crucial para a documentação de práticas musicais que podem estar ameaçadas ou em processo de mudança. Em um mundo de rápida globalização e urbanização, muitas tradições musicais correm o risco de desaparecer ou serem transformadas irreconhecivelmente. O etnomusicólogo, através de gravações de áudio e vídeo, fotografias e anotações detalhadas, desempenha um papel vital na preservação do patrimônio musical imaterial. Esses registros não apenas servem para a análise acadêmica, mas também podem ser devolvidos às comunidades para fins de revitalização cultural, educação e fortalecimento da identidade. A responsabilidade arquivística é, portanto, uma dimensão importante do trabalho de campo etnomusicológico.

Além da coleta de dados, o trabalho de campo oferece um espaço para a reflexividade do pesquisador. A imersão em uma cultura diferente desafia as próprias premissas e preconceitos do etnomusicólogo, promovendo um crescimento pessoal e intelectual. As dificuldades, os desafios e as descobertas inesperadas do campo moldam a trajetória da pesquisa, levando a novas perguntas e a uma compreensão mais matizada da condição humana. É um processo dinâmico de aprendizagem contínua, onde o pesquisador se torna tanto um aluno quanto um observador, e onde a própria subjetividade do pesquisador é reconhecida como parte integrante do processo de pesquisa, exigindo uma autoavaliação constante e uma profunda humildade.

No cenário contemporâneo, o trabalho de campo se expandiu para além dos contextos “exóticos” ou rurais, abrangendo também as cidades globais, as diásporas e as comunidades virtuais. A etnomusicologia urbana, por exemplo, explora as paisagens sonoras das metrópoles, as subculturas musicais e a forma como a música circula em ambientes multifacetados. O trabalho de campo digital, embora não substitua a presença física, complementa a pesquisa tradicional, permitindo a análise de interações musicais online e o estudo de comunidades virtuais. Essa adaptabilidade metodológica demonstra a vitalidade e a flexibilidade do trabalho de campo como ferramenta essencial para o estudo da música em um mundo em constante transformação, permitindo a exploração de fenômenos musicais emergentes.

O trabalho de campo na etnomusicologia não é estático; ele está em constante evolução, respondendo aos desafios éticos, tecnológicos e sociais. As discussões sobre a duração ideal do trabalho de campo, o engajamento pós-campo e a devolução de resultados continuam a enriquecer a prática metodológica. A essência, no entanto, permanece a mesma: a crença de que a compreensão mais profunda da música reside na sua interação com a vida humana, e que essa interação só pode ser plenamente apreendida através de uma presença atenta e respeitosa no local onde a música acontece. A capacidade de transcender o puramente acadêmico e mergulhar na experiência humana viva é o que confere ao trabalho de campo seu valor inestimável na etnomusicologia.

Como a etnomusicologia aborda a relação entre música e cultura?

A etnomusicologia está fundamentalmente centrada na exploração da relação intrínseca entre música e cultura, considerando-as como esferas inseparáveis da experiência humana. Para os etnomusicólogos, a música não é um fenômeno isolado ou puramente estético, mas sim um sistema simbólico e um comportamento social que reflete, constrói e transforma os valores, crenças, identidades e estruturas de uma comunidade. A abordagem etnomusicológica parte do pressuposto de que toda música é culturalmente situada, e que para compreendê-la plenamente, é essencial desvendar o contexto sócio-cultural em que ela é criada, performada e recebida. Esta interdependência é o coração da disciplina, diferenciando-a de abordagens que se focam apenas nas características formais do som.

A etnomusicologia investiga como a música funciona como um espelho da cultura, expressando aspectos como cosmologia, religião, organização social, ritos de passagem, festividades e história. Por exemplo, em muitas culturas, canções e danças são elementos centrais de rituais de cura, cerimônias de casamento ou funerais, servindo para invocar poderes espirituais, fortalecer laços comunitários ou processar emoções coletivas. A forma, o timbre, o ritmo e a melodia podem carregar significados específicos que só podem ser decifrados dentro do sistema de símbolos e referências daquela cultura. A simbologia musical é, portanto, um campo fértil para a pesquisa, revelando camadas de significado que vão além do auditivo e tocam o âmago da experiência cultural.

Além de refletir a cultura, a música é também um agente ativo na sua construção. Ela pode ser um meio para a transmissão de conhecimentos ancestrais, histórias e mitos de geração em geração, servindo como uma forma de pedagogia cultural. A música também pode ser utilizada para expressar resistência política, reivindicar direitos sociais ou forjar identidades em contextos de diáspora e migração. O estudo de gêneros musicais como o blues, o reggae ou o hip-hop, por exemplo, revela como a música se tornou uma voz poderosa para comunidades marginalizadas, articulando suas experiências e lutas. A etnomusicologia explora essa capacidade performativa da música de moldar e negociar realidades sociais, atuando como um catalisador de mudança e um meio de comunicação.

A etnomusicologia também aborda a diversidade de conceitos de música que existem globalmente. Nem todas as culturas conceituam “música” da mesma forma que o Ocidente; em algumas, não existe sequer uma palavra separada para ela, sendo as práticas sonoras integradas em outras esferas da vida, como o ritual, o trabalho ou a fala. O campo, portanto, desafia a universalidade da noção ocidental de música, buscando entender as categorias, classificações e estéticas que são nativas a cada cultura. Essa sensibilidade etnocêntrica é crucial para evitar a imposição de quadros conceituais externos e para valorizar a autonomia intelectual das comunidades estudadas, promovendo uma compreensão mais respeitosa e precisa.

A relação entre música e cultura é explorada através de diversas lentes teóricas e metodológicas. A abordagem funcionalista, por exemplo, investiga como a música serve a propósitos específicos dentro de uma sociedade (coerção social, cura, entretenimento). A abordagem interpretativa, por sua vez, foca nos significados simbólicos e nas experiências subjetivas que a música evoca. Mais recentemente, a etnomusicologia tem se engajado com perspectivas pós-coloniais e de gênero, analisando como a música está implicada em relações de poder, hierarquias e identidades marginalizadas. Essa pluralidade de abordagens permite uma análise rica e multifacetada da complexidade da interação entre som e vida humana.

O impacto da globalização e da tecnologia na relação entre música e cultura é um tema crescente na etnomusicologia contemporânea. A circulação transnacional de músicas, artistas e instrumentos, facilitada pelas mídias digitais e pelas redes de comunicação, cria novas formas de hibridismo cultural e identidades musicais. A etnomusicologia investiga como as tradições musicais se adaptam, resistem ou se transformam em face dessas influências externas, e como novas comunidades musicais emergem em espaços virtuais e diaspóricos. A interconexão global da música demonstra que a cultura não é estática, mas um processo dinâmico de negociação e reinterpretação contínuas, e a música é um termômetro sensível dessas transformações culturais.

Em suma, a etnomusicologia não vê a música como um mero produto da cultura, mas como um elemento intrínseco e dinâmico que participa ativamente da sua construção e expressão. Ao desvendar as complexas interações entre som, comportamento, crença e significado, a disciplina oferece uma compreensão mais rica e abrangente não apenas da música em si, mas da própria condição humana em sua diversidade e complexidade. A relação entre música e cultura é, portanto, o campo mais fértil para a investigação etnomusicológica, revelando como o ato de fazer e experimentar música é fundamental para o modo de vida de cada povo.

Quais são os desafios éticos na pesquisa etnomusicológica?

A pesquisa etnomusicológica, ao se engajar diretamente com pessoas e comunidades, enfrenta uma série de desafios éticos complexos que exigem reflexão contínua e práticas responsáveis. Um dos principais é a questão do consentimento informado. É crucial que os participantes da pesquisa compreendam plenamente a natureza do estudo, seus objetivos, como os dados serão usados e divulgados, e que eles tenham a liberdade de participar ou retirar-se a qualquer momento sem coerção. Em muitas culturas, o conceito de consentimento individual pode não se alinhar perfeitamente com as práticas comunitárias de tomada de decisão, exigindo uma sensibilidade para as nuances culturais e uma adaptação das abordagens padrão. A obtenção de consentimento não é um ato único, mas um processo contínuo de diálogo e renegociação ao longo da pesquisa.

A representação e autoria são outro desafio ético significativo. O etnomusicólogo tem a responsabilidade de representar as vozes e as perspectivas dos participantes de forma precisa e respeitosa, evitando estereótipos ou distorções. Isso implica em dar crédito adequado aos detentores do conhecimento, reconhecendo suas contribuições e, em alguns casos, coautoria ou co-criação de produtos da pesquisa. A questão de quem fala por quem, e como as narrativas são construídas, é central. É vital que a pesquisa evite a reiteração de narrativas coloniais ou orientalistas que historicamente marginalizaram certas culturas musicais. A devolução dos resultados às comunidades em formatos acessíveis e úteis é uma forma de garantir que a pesquisa não seja apenas extrativista, mas beneficie aqueles que participaram. A prestação de contas é um imperativo ético.

A propriedade intelectual das expressões musicais é um campo minado de dilemas éticos. Em muitas culturas, a música pode ser considerada propriedade coletiva, ligada a rituais específicos, linhagens familiares ou conhecimentos sagrados, e não um bem individual para comercialização. O etnomusicólogo precisa navegar cuidadosamente nas complexidades dos direitos autorais e da apropriação cultural, garantindo que as gravações e as análises não violem os direitos ou os desejos das comunidades. Isso pode envolver a negociação de acordos de licenciamento, restrições de acesso a materiais sensíveis ou o desenvolvimento de modelos de compartilhamento de benefícios que sejam equitativos. A proteção do conhecimento tradicional é um dever ético fundamental.

O equilíbrio entre a objetividade acadêmica e o engajamento pessoal também apresenta um desafio. Embora a etnomusicologia valorize a imersão e a observação participante, o pesquisador precisa manter uma distância crítica para a análise, sem se tornar um ativista ou um “nativo idealizado”. Contudo, a negação total de engajamento também pode ser problemática, especialmente quando as comunidades enfrentam ameaças à sua cultura ou subsistência. A linha entre pesquisa e advocacy pode ser tênue, e o etnomusicólogo precisa definir suas posições e limites éticos de forma clara e transparente. A reflexividade sobre a própria posição e o impacto da pesquisa é um componente essencial da prática ética, reconhecendo a inevitável subjetividade do processo.

A segurança e o bem-estar dos participantes e do pesquisador são considerações primordiais. Em alguns contextos, a pesquisa pode envolver riscos físicos ou sociais, tanto para os entrevistados quanto para o etnomusicólogo. A confidencialidade e o anonimato são cruciais quando se lida com informações sensíveis ou vulneráveis. O pesquisador deve estar preparado para situações inesperadas e ter planos de contingência para proteger a si mesmo e aos outros. A empatia e a sensibilidade cultural são mais do que qualidades pessoais; são ferramentas éticas que ajudam a mitigar riscos e a construir relações de confiança, garantindo que a pesquisa seja conduzida com o máximo cuidado e responsabilidade, priorizando a segurança de todos os envolvidos na investigação.

A questão da “devolução” ou retorno de resultados é um imperativo ético crescente. Não basta coletar dados e publicar artigos em periódicos acadêmicos; o etnomusicólogo tem a responsabilidade de compartilhar os frutos de sua pesquisa com as comunidades que a tornaram possível. Isso pode ser feito através da criação de arquivos locais, oficinas de revitalização musical, apresentações públicas, publicações em línguas locais, ou outros formatos que sejam relevantes e acessíveis aos participantes. O objetivo é que a pesquisa seja uma via de mão dupla, gerando benefícios tangíveis para as comunidades e promovendo a sua própria auto-representação e o fortalecimento cultural. O ato de retornar os resultados da pesquisa demonstra respeito e apreço pelo conhecimento compartilhado.

Em suma, os desafios éticos na etnomusicologia não são meros obstáculos a serem superados, mas sim componentes intrínsecos de uma prática de pesquisa responsável e significativa. Eles exigem um compromisso constante com a reflexão, o diálogo, a negociação e a adaptação. Ao abordar esses desafios com sensibilidade e integridade, os etnomusicólogos podem não apenas produzir conhecimento valioso sobre a música e a cultura, mas também contribuir para relações mais justas e equitativas entre pesquisadores e comunidades, promovendo um modelo de pesquisa que seja eticamente consciente e socialmente engajado, e que reconheça a dignidade e a autonomia dos sujeitos da pesquisa em todos os momentos.

De que forma a etnomusicologia analisa a performance musical?

A etnomusicologia aborda a performance musical não apenas como a execução de uma obra, mas como um evento cultural complexo e dinâmico, um locus privilegiado onde a música se manifesta em sua plenitude, integrando som, corpo, espaço e interação social. Longe de ser um mero veículo para a música, a performance é vista como o próprio ato de fazer música, um processo contínuo que revela os significados, valores e funções de uma dada tradição. A análise etnomusicológica vai além da partitura ou da gravação para investigar os aspectos contextuais, interativos e encarnados da música. O foco está na ação, na interação entre músicos e público, na improvisação, no movimento corporal e na relação com o ambiente, elementos cruciais para a compreensão da experiência musical total.

Um dos pilares da análise de performance é a compreensão de que a música é atividade social e ritualística. O etnomusicólogo investiga como a performance é enquadrada por rituais, celebrações, ou eventos cotidianos, e como esses enquadramentos influenciam a forma como a música é feita e percebida. Questões como quem pode performar, onde a performance ocorre, qual o papel do público e quais são as expectativas comportamentais são cruciais. A análise busca desvendar as regras implícitas e explícitas que governam a performance em uma cultura, revelando as dinâmicas de poder, hierarquia e inclusão/exclusão que podem estar em jogo. A performance é um espaço de negociação de identidade e significado, um palco para a encenação de valores culturais.

A dimensão corporal é inseparável da performance musical na etnomusicologia. O movimento, a postura, os gestos e as expressões faciais dos músicos e dançarinos são vistos como elementos intrínsecos à experiência musical. A análise considera como os corpos são treinados, como se movem no espaço e como a coreografia se entrelaça com a estrutura sonora. A performance é compreendida como um ato de corporeificação de conhecimento e emoção, onde o corpo se torna um instrumento e um repositório de memória cultural. O estudo da improvisação, por exemplo, não se restringe à sua estrutura musical, mas inclui a interação imediata entre os corpos dos músicos, suas respostas mútuas e a fluidez da criação conjunta no momento da execução, revelando a complexidade da cognição encarnada na música.

A etnomusicologia também explora a performance como um processo de comunicação e interação. A relação entre performers e audiência é um campo rico de investigação. Como o público responde? Há participação ativa (cantando junto, dançando, aplaudindo) ou uma escuta mais contemplativa? Como os músicos se comunicam entre si durante a performance, especialmente em tradições de improvisação coletiva? A análise desses circuitos de feedback revela como a música é cocriada no momento, moldada pela interação contínua entre todos os envolvidos. O ambiente acústico, o espaço físico e a presença de artefatos visuais também são considerados como elementos que contribuem para a experiência performática total, e o fluxo constante de informações é observado.

A tecnologia, tanto a antiga quanto a moderna, desempenha um papel crescente na forma como a performance é analisada. Gravações de áudio e vídeo de alta qualidade permitem que os etnomusicólogos revisitem performances repetidamente, focando em detalhes que seriam perdidos na observação em tempo real. Softwares de análise sonora e visual podem ajudar a desvendar padrões rítmicos complexos, a nuances de timbre e a sincronia entre movimento e som. A etnomusicologia também considera como a performance é mediada pela tecnologia (rádio, televisão, internet), e como a gravação e a reprodução alteram a natureza da performance, influenciando sua circulação, recepção e transformação ao longo do tempo. A materialidade da mídia se torna um objeto de estudo por si só.

A análise da performance também inclui o estudo de repertório, estilo e virtuosismo. O etnomusicólogo investiga o que constitui uma “boa” performance em uma determinada cultura, quais são os critérios estéticos e técnicos, e como os músicos adquirem as habilidades necessárias. A aprendizagem musical e os processos de transmissão oral ou formal são cruciais para entender como a performance é perpetuada e inovada. A análise não se limita à “obra” final, mas abrange os processos de ensaio, os métodos de ensino e as pedagogias informais que moldam o desenvolvimento dos performers. A fluidez do repertório, muitas vezes construído sobre tradições de variação e reinterpretação, é um aspecto frequentemente explorado, revelando a criatividade e a flexibilidade das práticas musicais vivas.

Em síntese, a etnomusicologia vê a performance musical como um microcosmo da cultura, um evento rico em significado que integra som, corpo, emoção e interação social. A análise profunda da performance não apenas desvenda a beleza e a complexidade das expressões musicais, mas também oferece insights cruciais sobre a cultura que a produz. Ao ir além das estruturas musicais para abraçar a totalidade da experiência performática, a etnomusicologia contribui para uma compreensão mais completa e encarnada da música como um fenômeno humano fundamental, revelando a inextricável teia de relações que se manifesta a cada execução, a cada dança, a cada som que emerge de uma comunidade vibrante.

Como a etnomusicologia contribui para o estudo das identidades?

A etnomusicologia oferece uma perspectiva inestimável para o estudo das identidades, compreendendo a música como um poderoso marcador e construtor de quem somos, individual e coletivamente. A música é muito mais do que entretenimento; ela é um veículo para a expressão de pertença, diferença, resistência e aspiração, moldando e refletindo as complexas camadas da identidade. Os etnomusicólogos investigam como as práticas musicais são imbricadas nas formações identitárias, sejam elas étnicas, nacionais, religiosas, de gênero, geracionais ou subculturais. Através do som, do ritmo e da performance, as pessoas afirmam sua singularidade, solidificam laços comunitários e negociam seu lugar no mundo, tornando a música um campo fértil para a auto-expressão.

Uma das contribuições mais significativas é a análise de como a música constrói e expressa identidades étnicas e nacionais. Canções folclóricas, hinos nacionais, danças tradicionais e estilos musicais distintivos são frequentemente associados a grupos étnicos ou nações específicas, servindo como emblemas sonoros de sua herança e pertencimento. A etnomusicologia explora como essas músicas são transmitidas, transformadas e revitalizadas em contextos de diáspora, migração e globalização, onde a música pode se tornar um elo vital com a pátria de origem e um meio de reafirmação cultural em um novo ambiente. O estudo do fado português ou do tango argentino, por exemplo, revela como gêneros musicais se tornam símbolos nacionais, carregados de nostalgia e orgulho. A música, assim, atua como um repositório de memória coletiva.

A etnomusicologia também tem sido crucial para o estudo das identidades de gênero e sexualidade na música. Ela investiga como a performance musical, a composição e a participação em diferentes gêneros musicais são informadas por normas de gênero, e como a música pode ser um espaço para desafiar ou reforçar essas normas. O campo analisa as vozes e experiências de mulheres, comunidades LGBTQI+ e outros grupos marginalizados na música, desvendando as restrições e as oportunidades que lhes são apresentadas. A performance de drag queens ou o surgimento de gêneros musicais específicos de comunidades LGBTQI+ são exemplos de como a música permite a exploração e expressão de identidades fluidas e não conformes, revelando a capacidade da música para a subversão e empoderamento.

As identidades subculturais e juvenis são outro foco de pesquisa. Gêneros musicais como o punk, o hip-hop, o metal ou a música eletrônica são frequentemente associados a comunidades de fãs, estilos de vida e sistemas de valores específicos. A etnomusicologia explora como esses gêneros musicais funcionam como espaços de afiliação e diferenciação, permitindo que os jovens construam e expressem suas identidades em oposição às normas dominantes. A música se torna um meio de construção de capital cultural, de expressão de descontentamento social e de formação de laços de solidariedade entre os membros de um grupo. A estética sonora e a prática performática contribuem para a demarcação de fronteiras identitárias, criando comunidades de sentido em torno de estilos musicais específicos.

A etnomusicologia também aborda a fluidez e a multiplicidade das identidades no mundo contemporâneo. Em vez de ver as identidades como fixas e monolíticas, a disciplina reconhece que elas são dinâmicas, contextuais e muitas vezes híbridas, especialmente em cenários de globalização e migração. A música de fusão, o world music e os gêneros musicais transnacionais são exemplos de como as identidades podem ser negociadas e rearticuladas através da experimentação sonora. O estudo de músicos diaspóricos, por exemplo, revela como eles criam novas formas de expressão que refletem suas experiências de deslocamento e sua conexão com múltiplas heranças culturais. A música, assim, se torna um espaço de negociação cultural contínua.

A pesquisa em etnomusicologia frequentemente emprega uma abordagem interseccional para o estudo da identidade, reconhecendo que diferentes categorias de identidade (etnia, gênero, classe, religião) não existem isoladamente, mas se cruzam e se influenciam mutuamente. A música pode expressar a complexidade dessas identidades interseccionais, oferecendo uma plataforma para a articulação de experiências vividas que são multifacetadas. O etnomusicólogo busca desvendar como as práticas musicais são moldadas por essas intersecções, e como os músicos as utilizam para navegar e contestar as estruturas de poder. A capacidade da música de expressar e comunicar a diversidade da experiência humana a torna uma ferramenta poderosa para a investigação da identidade.

Em última análise, a etnomusicologia, ao focar na música como um veículo e um construtor de identidade, oferece uma compreensão mais rica e matizada de como os seres humanos se definem e se relacionam uns com os outros. Através de seus métodos etnográficos e sua sensibilidade cultural, a disciplina revela as complexas maneiras pelas quais o som se entrelaça com o senso de self e de pertencimento, contribuindo para uma apreciação mais profunda da diversidade humana e da potência da expressão musical em todas as suas manifestações. A música, assim, não é apenas um reflexo, mas uma força ativa na construção contínua de quem somos no mundo.

Quais as contribuições da etnomusicologia para a educação musical?

A etnomusicologia oferece contribuições transformadoras para o campo da educação musical, desafiando concepções eurocêntricas e promovendo uma abordagem mais inclusiva, culturalmente sensível e globalizada. Ao expandir o repertório e a perspectiva da educação musical para além do cânone ocidental, a etnomusicologia enriquece o currículo, tornando-o mais relevante e representativo da diversidade sonora do mundo. Ela encoraja educadores e alunos a explorar uma vasta gama de tradições musicais, desde o gamelão indonésio e a música de tambores africana até o hip-hop contemporâneo e as canções indígenas, promovendo uma apreciação mais ampla da criatividade musical humana e desmistificando a ideia de uma única forma “correta” de fazer ou entender música.

Uma contribuição fundamental é a promoção da escuta intercultural. A etnomusicologia ensina os educadores a abordar a música de diferentes culturas com uma mente aberta e uma sensibilidade para os seus contextos sociais e culturais. Em vez de simplesmente “apresentar” músicas de outras culturas, a abordagem etnomusicológica sugere que os alunos investiguem o significado, função e performance dessas músicas dentro de suas próprias culturas. Isso envolve a exploração de questões como: Quem faz essa música? Para que propósito? Como ela é aprendida e transmitida? Quais valores culturais ela expressa? Essa abordagem aprofundada ajuda a desenvolver empatia cultural e a combater preconceitos, preparando os alunos para um mundo globalizado e interconectado, onde a diversidade cultural é uma realidade presente.

A etnomusicologia também enfatiza a importância da aprendizagem musical contextualizada. Em vez de focar apenas na teoria musical abstrata ou na execução de partituras, ela sugere que a educação musical deve envolver a experiência prática e o engajamento com a música em seu ambiente social. Isso pode incluir a aprendizagem de instrumentos não ocidentais, a participação em práticas musicais vocais ou corporais de outras culturas, e a compreensão dos processos de transmissão oral. A etnomusicologia defende que a aprendizagem é mais eficaz quando integrada em um contexto cultural significativo, onde a música é vivenciada como parte de um todo maior. A prática performática é valorizada como um meio de aquisição de conhecimento e compreensão cultural, uma forma de vivenciar a música de dentro.

A disciplina contribui para o desenvolvimento de uma pedagogia mais inclusiva e equitativa. Ao reconhecer e valorizar as tradições musicais dos alunos de diversas origens étnicas, raciais e socioeconômicas, a etnomusicologia ajuda a tornar a educação musical mais relevante e engajadora para todos. Ela encoraja os educadores a explorar as músicas que os próprios alunos ouvem e praticam fora da sala de aula, legitimando suas experiências musicais e construindo pontes entre a escola e a comunidade. Essa abordagem centrada no aluno promove a autoestima cultural e o senso de pertencimento, garantindo que o currículo não seja percebido como algo imposto, mas como um espaço de exploração e afirmação da própria identidade musical, permitindo a cada estudante encontrar seu lugar no universo sonoro.

Além disso, a etnomusicologia incentiva a pesquisa-ação e a colaboração na educação musical. Educadores podem se inspirar nos métodos de trabalho de campo dos etnomusicólogos para conduzir suas próprias “mini-etnografias” em suas comunidades escolares, investigando as paisagens sonoras locais e as práticas musicais de seus alunos. Isso pode levar a projetos de cocriação com músicos da comunidade, a workshops com artistas tradicionais, ou a visitas a eventos musicais locais. A conexão entre a escola e a comunidade é fortalecida, transformando a sala de aula em um laboratório vibrante de exploração musical e cultural. Essa abordagem empírica e participativa promove uma aprendizagem mais autêntica e engajadora, enriquecendo a experiência educacional.

A etnomusicologia também influencia a educação musical ao promover a crítica e a reflexão sobre o conceito de música e suas aplicações. Ela convida os alunos a questionar suas próprias premissas sobre o que é “boa música”, o que é “música erudita” versus “música popular”, e como a música se relaciona com o poder e a sociedade. Isso desenvolve o pensamento crítico e a capacidade de análise dos alunos, permitindo-lhes navegar nas complexidades do mundo musical contemporâneo. A compreensão de que a música é um fenômeno culturalmente construído e em constante evolução os prepara para apreciar a diversidade e a adaptabilidade das expressões sonoras, estimulando uma consciência global e uma visão de mundo mais plural e informada.

Em síntese, as contribuições da etnomusicologia para a educação musical vão muito além da mera adição de “exemplos do mundo” ao currículo. Ela propõe uma revisão fundamental de como a música é ensinada e aprendida, promovendo uma abordagem mais holística, intercultural e socialmente consciente. Ao valorizar a diversidade, o contexto e a participação ativa, a etnomusicologia capacita os educadores a formar cidadãos mais informados, empáticos e culturalmente competentes, capazes de apreciar a riqueza da tapeçaria sonora global e de se engajar de forma significativa com o poder transformador da música em suas vidas e no mundo. A visão expandida da música é um de seus legados mais duradouros para a pedagogia musical moderna.

Como a globalização impacta os estudos etnomusicológicos?

A globalização representa um dos fenômenos mais impactantes para os estudos etnomusicológicos contemporâneos, transformando fundamentalmente as práticas musicais e as metodologias de pesquisa. Em vez de comunidades isoladas com tradições musicais estáticas, o mundo globalizado é caracterizado por um fluxo contínuo de sons, pessoas, tecnologias e ideias através de fronteiras geográficas e culturais. Este cenário dinâmico força os etnomusicólogos a repensar conceitos como “autenticidade”, “tradição” e “cultura”, uma vez que as músicas se tornam cada vez mais híbridas, remixadas e transnacionais. A globalização não é um processo uniforme, mas uma série de fluxos interconectados que geram novas complexidades e oportunidades para a pesquisa musical, desafiando noções antigas de localidade e pureza cultural.

Um impacto direto da globalização é o aumento da circulação de músicas e músicos em escala global. Mídias digitais, plataformas de streaming e redes sociais permitem que músicas de culturas diversas atinjam públicos em todo o mundo em tempo real. Isso leva a fenômenos de hibridismo musical, onde elementos de diferentes tradições se misturam, criando novos gêneros e estilos. A etnomusicologia investiga como esses encontros sonoros ocorrem, quem são os agentes dessa fusão, e como as identidades musicais são negociadas nessas intersecções. O estudo do world music, do fusion jazz, ou de gêneros urbanos globais como o hip-hop, que incorporam elementos locais e globais, são exemplos de como a disciplina aborda essas transformações. A perda de fronteiras claras entre gêneros é um tema central.

A globalização também acentua a complexidade das identidades diaspóricas e a música como um elo com a pátria de origem. Comunidades migrantes mantêm suas tradições musicais, transformando-as e adaptando-as em novos contextos geográficos, ao mesmo tempo em que absorvem influências das culturas anfitriãs. A etnomusicologia explora como a música funciona como um meio de nostalgia, resistência, afirmação cultural e formação de novas identidades em situações de deslocamento. O estudo da música de comunidades latino-americanas nos EUA, africanas na Europa, ou asiáticas no Brasil, revela como a música se torna um espaço de negociação entre múltiplas heranças, expressando a fluidez da identidade em um mundo em movimento constante.

O impacto da tecnologia é inseparável da globalização. As ferramentas digitais de produção, distribuição e consumo musical transformaram radicalmente o cenário sonoro global. O etnomusicólogo agora estuda como a música é criada em estúdios caseiros, compartilhada em plataformas online, e consumida em dispositivos móveis. A ascensão da cultura do remix, do mash-up e do sample levanta novas questões sobre autoria, propriedade e criatividade. O acesso a vastos arquivos de música global online também redefine a pesquisa, permitindo análises comparativas em uma escala sem precedentes. A tecnologia não é apenas uma ferramenta, mas uma força ativa na moldagem da música e da experiência musical, exigindo novas metodologias de pesquisa.

A globalização também trouxe à tona questões éticas urgentes, como a apropriação cultural e o comercialismo. A etnomusicologia se debruça sobre como as músicas tradicionais são descontextualizadas, comercializadas e, por vezes, esvaziadas de seu significado original quando inseridas no mercado global. Isso levanta preocupações sobre os direitos autorais, a remuneração justa para os artistas tradicionais e a representação autêntica das culturas. A disciplina busca desenvolver práticas de pesquisa mais éticas e colaborativas, que priorizem a agência das comunidades e a devolução de benefícios, atuando como um campo de crítica social em relação às injustiças da economia global da música. A autonomia cultural e a proteção do patrimônio são desafios críticos.

Ainda, a globalização impacta a própria formação e atuação dos etnomusicólogos. O campo tem se tornado mais diverso em termos de origem geográfica dos pesquisadores, e há uma crescente demanda por estudos que abordem a música local e regional dentro de suas próprias nações. Isso contrasta com o modelo inicial de pesquisadores ocidentais estudando culturas não ocidentais. A globalização incentiva a descentralização do conhecimento, promovendo a pesquisa “de dentro para fora” e a formação de etnomusicólogos nativos que trazem perspectivas únicas e insights valiosos para a disciplina. A internacionalização da academia é um reflexo direto do mundo globalizado e suas demandas de pesquisa.

Em suma, a globalização não é apenas um pano de fundo para a etnomusicologia, mas uma força transformadora que exige uma reavaliação contínua de seus conceitos, métodos e ética. Ao invés de ser um impedimento, a complexidade da globalização oferece um campo fértil para a pesquisa inovadora, permitindo aos etnomusicólogos explorar as dinâmicas de conexão, hibridismo, resistência e reinvenção musical em um mundo cada vez mais interligado. A capacidade de navegar nessas complexidades e de oferecer insights matizados sobre o fluxo global de sons e culturas é o que garante a relevância contínua da etnomusicologia na compreensão da experiência musical contemporânea e seus desafios.

Quais exemplos marcantes ilustram a diversidade de temas etnomusicológicos?

A etnomusicologia, por sua própria natureza de abraçar a música em todas as suas manifestações culturais, oferece uma miríade de exemplos marcantes que ilustram a vasta diversidade de temas que podem ser investigados. Desde as remotas tradições orais até as complexas paisagens sonoras urbanas, cada estudo de caso revela a riqueza e a profundidade da interconexão entre som e vida humana. Um exemplo clássico é o estudo da música do gamelão indonésio, particularmente de Bali e Java. Etnomusicólogos como Mantle Hood e Michael Tenzer dedicaram-se a compreender não apenas as complexas estruturas rítmicas e melódicas desses conjuntos de percussão, mas também o seu papel central em rituais religiosos, peças de teatro de sombras (wayang kulit) e celebrações comunitárias, revelando como a música está intrinsecamente ligada à cosmologia e à vida social balinesa, e a como as músicas são aprendidas e transmitidas de geração em geração, muitas vezes sem notação formal, mas através da pedagogia oral e prática.

Outro exemplo paradigmático é a pesquisa sobre os cantos de cura xamânicos de diversas culturas indígenas, como os Wayãpi da Amazônia ou os Kaluli de Papua Nova Guiné, estudados por Steven Feld. Aqui, o foco não é apenas na melodia ou no ritmo, mas no poder performático do som para mediar entre o mundo humano e o espiritual, curar doenças e restabelecer o equilíbrio social. A etnomusicologia explora a interrelação entre o canto, o ritual, a cosmologia e o ambiente natural, desvendando como os sons da natureza (como o canto dos pássaros ou o som do rio) são imitados e incorporados à música, e como a experiência sonora é intrinsecamente ligada à percepção do mundo pelos participantes. A eficácia simbólica da música é um ponto central de análise, e as performances são vistas como atos que transformam a realidade.

A música como expressão de identidade e resistência em contextos diaspóricos e pós-coloniais é outro tema recorrente. O estudo do reggae jamaicano e sua disseminação global, por exemplo, revela como a música se tornou um veículo para a mensagem de justiça social e pan-africanismo do movimento rastafári, conectando comunidades diaspóricas e influenciando gêneros musicais em todo o mundo. Da mesma forma, a pesquisa sobre o samba no Brasil, desde suas raízes nas comunidades afro-brasileiras até sua ascensão como símbolo nacional, ilustra como a música pode ser um campo de negociação de poder, identidade e representação, muitas vezes em face de repressão e marginalização. A capacidade subversiva da música é frequentemente destacada, e sua resiliência em face das adversidades é notável.

A etnomusicologia também se volta para a análise das paisagens sonoras urbanas e das subculturas musicais contemporâneas. O estudo da cena do hip-hop em cidades como Nova York ou São Paulo, por exemplo, não se limita à análise das letras ou batidas, mas investiga como o hip-hop funciona como uma cultura complexa que engloba dança (breakdance), arte visual (grafite), moda e um forte senso de comunidade. A pesquisa explora como os jovens utilizam o hip-hop para expressar suas experiências de vida, construir identidades e comentar sobre questões sociais e políticas em seus bairros. O uso de samples e tecnologias digitais nesse gênero também levanta questões fascinantes sobre autoria, apropriação e criatividade na era digital, e a forma como a música se torna um território de inovação.

A relação entre música, religião e rituais sagrados constitui um vasto campo de estudo. A etnomusicologia investiga a música em contextos como os cantos gregorianos (embora ocidentais, sua abordagem contextualizada se alinha com a etnomusicologia), a música sufista de dervixes giratórios no Oriente Médio, ou os toques de candomblé no Brasil. A análise não se restringe à liturgia, mas explora como o som, o ritmo e o movimento corporal induzem estados de transe, facilitam a comunicação com o divino e fortalecem a fé dos praticantes. A potência espiritual da música é um tema central, e as performances são vistas como portas de entrada para o transcendente. O entrelaçamento da fé e da expressão musical é frequentemente analisado, revelando a profundidade da experiência religiosa.

Temas mais recentes incluem a etnomusicologia do turismo e do festival, que investiga como a música é mercantilizada e representada em contextos turísticos, e como os festivais de música global criam novos espaços de intercâmbio cultural e negociação de identidades. A etnomusicologia da migração e da diáspora, que explora como a música se transforma em resposta ao deslocamento e à formação de novas comunidades transnacionais, também é um campo vibrante. A disciplina continua a expandir suas fronteiras, abordando questões de direitos autorais, tecnologia, ecologia sonora e política da música, demonstrando sua flexibilidade e relevância para o estudo do som em um mundo em constante mudança, e a capacidade de se adaptar a novas problemáticas sociais.

A tabela a seguir apresenta uma síntese de alguns exemplos temáticos na etnomusicologia, ilustrando a diversidade de abordagens e focos:

Esses exemplos são apenas uma amostra do vasto universo de estudos etnomusicológicos, demonstrando a versatilidade da disciplina em abordar as mais diversas manifestações sonoras humanas, sempre com uma lente culturalmente informada e uma profunda curiosidade sobre as complexas relações entre música, sociedade e experiência, continuamente ampliando nossa compreensão do que a música significa para as pessoas ao redor do globo, e como ela se manifesta em formas infinitamente criativas.

Como a tecnologia transformou a prática etnomusicológica?

A tecnologia tem sido uma força transformadora na prática etnomusicológica desde os primórdios da disciplina, redefinindo as metodologias de coleta de dados, análise e disseminação do conhecimento. A invenção do fonógrafo por Edison no final do século XIX, por exemplo, foi revolucionária, permitindo aos primeiros musicólogos comparados como Carl Stumpf e Erich von Hornbostel registrar músicas de culturas não ocidentais com uma fidelidade sem precedentes. Antes disso, a única forma de documentar tais músicas era através da transcrição manual, um processo lento e propenso a interpretações etnocêntricas. O fonógrafo e, posteriormente, os gravadores de rolo e fita, tornaram possível a preservação de performances autênticas para estudo e arquivamento, estabelecendo uma nova era para a documentação sonora na etnomusicologia.

O desenvolvimento da gravação de campo portátil e de alta fidelidade nas décadas de 1950 e 1960, com a introdução dos gravadores de fita magnética, marcou outro ponto de virada significativo. Etnomusicólogos podiam agora gravar em locais remotos com maior facilidade e qualidade, capturando nuances sonoras e contextuais que antes eram difíceis de obter. Isso levou a uma explosão de pesquisas de campo e à formação de vastos arquivos sonoros em instituições acadêmicas, que se tornaram recursos inestimáveis para a pesquisa comparativa e histórica. A acessibilidade e a durabilidade dessas gravações ampliaram exponencialmente o escopo da pesquisa, permitindo a revisitação de materiais por diferentes pesquisadores e a análise detalhada de performances complexas.

A era digital, a partir dos anos 1990 e 2000, trouxe uma revolução ainda mais profunda. A transição de mídias analógicas para formatos digitais (MP3, WAV) e o desenvolvimento de softwares de análise de áudio transformaram a maneira como os dados musicais são processados. Ferramentas digitais permitem a manipulação de velocidade, afinação e timbre, facilitando a transcrição de músicas complexas e a identificação de padrões acústicos. Softwares de visualização de espectrogramas e análise de frequência oferecem novas perspectivas sobre a estrutura sonora e as características timbrísticas, que são cruciais para a compreensão das estéticas musicais não ocidentais. A eficiência e a precisão da análise foram consideravelmente aprimoradas pela tecnologia digital, e a capacidade de processar grandes volumes de dados tornou-se uma realidade palpável.

A internet e as plataformas online (YouTube, Spotify, SoundCloud, Bandcamp) revolucionaram a circulação e o acesso à música global, impactando a forma como os etnomusicólogos concebem a “música” e o “campo”. A música não está mais confinada a espaços geográficos específicos, mas flui livremente através de redes virtuais, criando novas comunidades de ouvintes e praticantes. Isso levou à emergência da etnomusicologia digital ou da etnomusicologia da mídia, que investiga a cultura musical online, o fenômeno dos fandoms virtuais, a criação de música colaborativa à distância e as implicações de direitos autorais no ambiente digital. O “campo” não é mais apenas um lugar físico, mas também um espaço virtual, exigindo uma expansão das metodologias tradicionais de pesquisa, e a redefinição do engajamento com as comunidades.

O surgimento de bases de dados digitais e repositórios online tem facilitado o acesso a coleções de arquivos sonoros e visuais de todo o mundo, promovendo a pesquisa colaborativa e o intercâmbio de dados entre instituições. Isso permite que etnomusicólogos acessem materiais de pesquisa de diferentes culturas e períodos históricos sem a necessidade de viagens extensas, embora o trabalho de campo presencial continue sendo insubstituível para a compreensão contextualizada. A preservação digital de acervos também é crucial, garantindo que as gravações raras e frágeis sejam protegidas para as futuras gerações de pesquisadores e comunidades. A digitalização democratizou o acesso ao conhecimento e ao patrimônio sonoro global, e a capacidade de compartilhar esses recursos é inestimável.

As tecnologias de realidade virtual (RV) e realidade aumentada (RA) começam a oferecer novas possibilidades para a etnomusicologia, permitindo a recriação imersiva de ambientes performáticos e o estudo de práticas musicais em contextos simulados. Embora ainda em estágios iniciais, essas tecnologias têm o potencial de aprimorar a experiência de ensino e pesquisa, permitindo que os alunos e pesquisadores “visitem” concertos ou rituais em culturas distantes, experimentando a música de uma forma mais visceral. A tecnologia não apenas registra, mas também pode simular e interagir com a experiência musical, abrindo novas fronteiras para a análise performática e a educação, e promovendo uma compreensão mais profunda da complexidade do evento musical em seu ambiente total.

Em suma, a tecnologia não é apenas uma ferramenta neutra na etnomusicologia; ela é uma força ativa que molda a própria natureza da disciplina. Desde os primeiros fonógrafos até as complexas redes digitais e a inteligência artificial, cada avanço tecnológico redefiniu o que é possível investigar e como. Ao mesmo tempo, a tecnologia levanta novas questões éticas e metodológicas, exigindo que os etnomusicólogos sejam reflexivos e críticos sobre suas ferramentas. A prática etnomusicológica contemporânea é, portanto, inseparável da tecnologia, que continua a impulsionar a inovação e a expandir as fronteiras do conhecimento sobre a música em seu contexto humano, e o fluxo constante de novas ferramentas e plataformas redefine a maneira como a música é documentada e analisada.

Qual a importância da multidisciplinaridade na etnomusicologia?

A etnomusicologia é, por sua própria essência, uma disciplina profundamente multidisciplinar e transdisciplinar, e essa característica é fundamental para sua capacidade de compreender a complexidade do fenômeno musical. A música não existe no vácuo; ela é intrinsecamente ligada a uma teia de fatores sociais, culturais, históricos, psicológicos e até biológicos. Para abordar essa complexidade de forma abrangente, a etnomusicologia integra perspectivas, teorias e metodologias de uma ampla gama de campos do conhecimento. Essa abordagem holística permite que a disciplina vá além da mera análise do som para desvendar as profundas conexões entre a música e a totalidade da experiência humana. A multidisciplinaridade não é uma opção, mas uma necessidade intrínseca para a relevância do campo.

A antropologia é, sem dúvida, a mais proeminente das disciplinas irmãs da etnomusicologia. Da antropologia, a etnomusicologia herda o método do trabalho de campo, a observação participante e a ênfase na compreensão do contexto cultural. Conceitos antropológicos como cultura, rito, simbolismo, identidade, performance e cosmologia são centrais para a análise etnomusicológica da música como um comportamento humano. A etnomusicologia se baseia na capacidade da antropologia de decifrar os sistemas de significado e as práticas sociais de uma comunidade, permitindo que o som seja compreendido dentro de sua rede de relações culturais. A interação entre música e comportamento humano é a força motriz, e a abordagem etnográfica é a ponte para essa compreensão.

A musicologia (tradicional ou histórica) contribui com ferramentas para a análise estrutural da música. Embora a etnomusicologia não se limite à partitura, a compreensão de elementos como melodia, harmonia, ritmo, forma e timbre é crucial para a análise sonora. Técnicas de transcrição, teoria musical e organologia (estudo de instrumentos musicais) são empregadas e adaptadas para analisar músicas de diversas tradições. A etnomusicologia se beneficia da musicologia para refinar sua capacidade de descrever e interpretar as propriedades acústicas da música, enquanto, por sua vez, desafia a musicologia a ampliar seu cânone e a considerar o contexto cultural de suas análises. A confluência desses saberes enriquece ambas as disciplinas.

A sociologia fornece lentes para entender as dimensões sociais da música, como a formação de grupos, as hierarquias sociais, a música como forma de protesto e o papel da indústria musical. Conceitos como classe social, gênero, raça e poder são aplicados para analisar como a música reflete e molda as estruturas sociais. A linguística, especialmente a etnolinguística, é relevante para o estudo da letra das canções, da relação entre música e fala, e da terminologia musical nativa. A psicologia e a neurociência contribuem para a compreensão da percepção musical, da cognição, da emoção e dos efeitos fisiológicos da música no ser humano. Essa amplitude de diálogo permite uma visão mais completa das multifacetadas interações que compõem a experiência musical.

A história é indispensável para contextualizar as práticas musicais no tempo, traçando sua evolução, adaptação e transformação ao longo das gerações. A etnomusicologia histórica utiliza arquivos, documentos e relatos orais para reconstruir passados musicais e entender as dinâmicas de mudança. A geografia e os estudos ambientais oferecem insights sobre as paisagens sonoras, a relação entre música e ambiente, e o impacto da ecologia nas práticas musicais. Os estudos de performance (performance studies) enriquecem a compreensão da música como um evento encarnado e interativo, integrando corpo, movimento e audiência. A multidisciplinaridade permite a formulação de perguntas mais complexas e a descoberta de conexões inesperadas, proporcionando uma compreensão mais robusta.

A importância da multidisciplinaridade reside na sua capacidade de transcender as limitações de uma única disciplina. Uma abordagem puramente musicológica poderia ignorar o contexto cultural, enquanto uma abordagem puramente antropológica poderia negligenciar os aspectos sonoros intrínsecos. A etnomusicologia, ao tecer essas diversas perspectivas, cria uma teia de conhecimento mais rica e integrada, capaz de capturar a totalidade do fenômeno musical. Essa intersecção de saberes promove uma análise mais matizada e a formulação de teorias mais abrangentes, que dão conta da multiplicidade de significados e funções que a música assume em diferentes culturas. A fertilização cruzada de ideias é uma de suas maiores forças.

Em um mundo cada vez mais interconectado e complexo, a etnomusicologia, por sua natureza inerentemente multidisciplinar, está bem posicionada para abordar os desafios contemporâneos relacionados à música, como a globalização, a tecnologia digital, a apropriação cultural e a sustentabilidade. A capacidade de dialogar com diferentes campos do conhecimento permite que a disciplina ofereça insights valiosos e soluções inovadoras para questões que transcendem as fronteiras acadêmicas tradicionais. A multidisciplinaridade não é apenas uma característica, mas o próprio motor da vitalidade e da relevância da etnomusicologia, permitindo-lhe continuamente expandir suas fronteiras e contribuir para uma compreensão mais completa da música como uma expressão humana universal e culturalmente específica.

De que maneira a etnomusicologia se relaciona com os direitos autorais e apropriação cultural?

A etnomusicologia, em sua prática de documentar e analisar músicas de diversas culturas, frequentemente se depara com questões complexas e éticas relacionadas aos direitos autorais e à apropriação cultural. A disciplina tem um papel crucial na conscientização e no enfrentamento desses desafios, especialmente quando se trata de tradições musicais de comunidades indígenas e grupos minoritários, muitas vezes vulneráveis à exploração comercial e à descontextualização de seu patrimônio. A relação entre a pesquisa etnomusicológica e essas questões éticas é multifacetada, exigindo uma sensibilidade aguçada para as dinâmicas de poder e uma postura proativa na proteção do conhecimento tradicional, e a compreensão das complexidades legais e morais envolvidas é essencial.

Uma das principais áreas de preocupação é a propriedade intelectual de músicas tradicionais. Em muitas culturas, a música não é vista como uma propriedade individual passível de direitos autorais no sentido ocidental. Ela pode ser considerada um patrimônio coletivo, ligada a rituais específicos, linhagens familiares ou conhecimentos sagrados. Quando etnomusicólogos gravam e disseminam essas músicas, surge a questão de quem detém os direitos sobre essa gravação e sobre o conteúdo musical em si. A disciplina busca desenvolver protocolos éticos que respeitem as normas e os desejos das comunidades, o que pode envolver a negociação de acordos de licenciamento, restrições de acesso a materiais sensíveis ou o desenvolvimento de modelos de compartilhamento de benefícios que sejam equitativos e justos para os criadores e detentores do conhecimento, promovendo uma distribuição equitativa dos recursos.

A apropriação cultural é outra preocupação central. Isso ocorre quando elementos de uma cultura, como música, vestuário, símbolos ou rituais, são tomados por membros de outra cultura (geralmente dominante) sem permissão, reconhecimento ou compreensão adequada de seu significado original, muitas vezes para fins comerciais ou de entretenimento. Na música, isso pode manifestar-se quando artistas pop ocidentais utilizam ritmos, melodias ou instrumentos de culturas tradicionais sem dar crédito adequado, ou sem entender o contexto cultural, esvaziando a música de seu valor original. A etnomusicologia tem o papel de analisar esses processos de apropriação, expondo as dinâmicas de poder e as injustiças envolvidas, e educando o público sobre a importância do respeito cultural e da valorização da fonte original. A apropriação pode levar à comodificação e desvalorização de expressões culturais valiosas.

A disciplina também se engaja ativamente no debate sobre os direitos de execução pública e royalties para artistas tradicionais. Muitas vezes, músicos de culturas não ocidentais não estão cientes dos sistemas de direitos autorais globais ou não têm os meios para registrar suas obras e reivindicar royalties. Etnomusicólogos e defensores dos direitos indígenas trabalham para preencher essa lacuna, auxiliando as comunidades a navegar no complexo cenário legal e a garantir que sejam justamente compensadas quando suas músicas são utilizadas comercialmente. A etnomusicologia pode atuar como uma ponte entre as comunidades e as instituições legais, defendendo uma maior equidade e reconhecimento para os criadores de música tradicional, e buscando reformar as leis de direitos autorais para que sejam mais inclusivas e culturalmente sensíveis.

A questão da representação autêntica é igualmente importante. Ao documentar e apresentar músicas de outras culturas, o etnomusicólogo tem a responsabilidade de garantir que a narrativa seja fiel às perspectivas dos próprios músicos e comunidades, evitando estereótipos ou exotismos. A apropriação cultural muitas vezes distorce a imagem de uma cultura, apresentando-a de forma simplificada ou sensacionalista. Através de práticas de coautoria, consulta e devolução de resultados, a etnomusicologia busca empoderar as comunidades para que controlem suas próprias narrativas musicais e se representem de forma autônoma. O respeito pela voz nativa é um pilar dessa abordagem ética, e a promoção da autodeterminação cultural é um objetivo crucial.

A etnomusicologia contribui para o debate sobre os direitos autorais e a apropriação cultural ao fornecer uma base empírica e teórica sólida. Ao detalhar o contexto cultural, os significados e as funções sociais das músicas, a disciplina ajuda a demonstrar o valor intrínseco e a complexidade das tradições musicais, tornando mais difícil a sua descontextualização e exploração irresponsável. O conhecimento gerado pela pesquisa etnomusicológica pode ser usado para informar políticas públicas, educar o público e fortalecer os argumentos em favor da proteção do patrimônio musical imaterial, bem como para a formulação de diretrizes para o uso ético da música. A capacidade de fornecer um quadro contextual robusto é um ativo valioso.

Em última análise, a etnomusicologia desempenha um papel crítico na defesa da justiça musical e do reconhecimento cultural. Ao trabalhar em colaboração com as comunidades e ao defender práticas éticas de pesquisa e disseminação, a disciplina busca garantir que o rico patrimônio musical do mundo seja valorizado, protegido e que os criadores originais sejam devidamente reconhecidos e compensados. O compromisso com a ética e a equidade é fundamental para o futuro da etnomusicologia, assegurando que o estudo da música não contribua para a exploração, mas sim para a promoção da diversidade cultural e para a capacitação das comunidades em um mundo cada vez mais globalizado, onde as questões de propriedade e autoria se tornam cada vez mais prementes e complexas.

Como a etnomusicologia explora a música como forma de resistência e ativismo?

A etnomusicologia tem uma rica tradição em explorar a música como um poderoso veículo de resistência e ativismo social e político. Longe de ser apenas uma forma de entretenimento, a música é frequentemente utilizada por indivíduos e comunidades para desafiar a opressão, expressar descontentamento, fortalecer identidades marginalizadas e mobilizar ações coletivas. A disciplina investiga como os sons, letras, performances e contextos musicais são imbricados em lutas por justiça social, direitos humanos e autodeterminação. A música, nesse sentido, torna-se uma arma simbólica, um meio de comunicação e um espaço de solidariedade e empoderamento, revelando a capacidade da expressão artística para a transformação social e o enfrentamento de injustiças.

Um dos exemplos mais proeminentes é o estudo da música em movimentos de direitos civis e protestos políticos. O etnomusicólogo analisa como canções de protesto, hinos de liberdade e performances musicais em manifestações funcionam para unir pessoas, comunicar mensagens, inspirar coragem e manter viva a memória de lutas passadas. A música do movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, com suas canções gospel e freedom songs, é um exemplo clássico, demonstrando como o canto coletivo podia reforçar a solidariedade e a resiliência em face da segregação e da violência. A análise foca não apenas nas letras, mas também na melodia, ritmo e na performance vocal, que contribuem para a carga emocional e motivacional da mensagem, e na forma como essas canções se tornam emblemas de um movimento.

A etnomusicologia também explora a música como forma de resistência cultural em contextos coloniais e pós-coloniais. Comunidades submetidas à dominação estrangeira frequentemente utilizam suas músicas e danças tradicionais para preservar sua identidade, transmitir conhecimentos ancestrais e resistir à assimilação cultural. O estudo da música de povos indígenas sob regimes coloniais ou de diásporas africanas sob a escravidão, por exemplo, revela como as práticas musicais se tornaram espaços secretos de memória, comunicação e resiliência, onde a cultura era mantida viva e a esperança de libertação era alimentada. A música, nesse cenário, é um ato de sobrevivência e um símbolo de autonomia, e a análise de seu simbolismo e função é crucial para entender a persistência da cultura.

O campo investiga ainda como a música é utilizada para desafiar normas sociais e culturais, como as relacionadas a gênero, sexualidade e classe. Gêneros musicais subversivos, como o punk, o hip-hop, ou o queer pop, frequentemente servem como plataformas para artistas e comunidades expressarem descontentamento com o status quo, criticarem injustiças sociais e construírem identidades alternativas. A etnomusicologia analisa como as escolhas estéticas (letras explícitas, som agressivo, performance confrontadora) são intencionais para provocar e questionar, e como a música se torna um espaço de libertação e autoafirmação para aqueles que se sentem marginalizados. A transgressão sonora e performática é um aspecto frequentemente explorado, e a música se torna um veículo para a transformação de identicas e normas sociais.

A música como ativismo ambiental e de direitos humanos é um tema crescente. Artistas e comunidades utilizam a música para chamar a atenção para questões como as mudanças climáticas, a destruição ambiental, a proteção de terras indígenas e as violações de direitos humanos. Canções, videoclipes e performances em festivais ou eventos de conscientização buscam educar o público, mobilizar apoio e pressionar por mudanças políticas. A etnomusicologia explora a eficácia dessas estratégias musicais, como as mensagens são construídas e recebidas, e qual o papel da música na formação de uma consciência ecológica e social mais ampla. A dimensão global desses ativismos é um campo de pesquisa fértil, onde a música transcende fronteiras geográficas para amplificar mensagens de solidariedade.

A etnomusicologia da resistência também analisa as táticas musicais empregadas pelos ativistas. Isso pode incluir o uso de paródias, a ressignificação de canções existentes, a criação de hinos coletivos, o uso de instrumentos como símbolos de resistência, ou a organização de eventos musicais para arrecadação de fundos e conscientização. A disciplina investiga como essas táticas se adaptam a diferentes contextos políticos e tecnológicos, e como a música pode ser um elemento unificador em movimentos complexos e diversos. A capacidade da música de ser ao mesmo tempo expressiva e mobilizadora a torna uma ferramenta indispensável para a ação coletiva e a mudança social, e a criatividade no uso de elementos musicais para o protesto é frequentemente analisada.

Em síntese, a etnomusicologia oferece uma compreensão profunda de como a música não é apenas um reflexo passivo da sociedade, mas uma força ativa na sua transformação. Ao examinar a música como um veículo de resistência e ativismo, a disciplina revela o poder das expressões sonoras para contestar o status quo, afirmar identidades, mobilizar comunidades e articular visões de um futuro mais justo. O estudo da música como ferramenta de mudança social é um dos campos mais dinâmicos e relevantes da etnomusicologia contemporânea, demonstrando a interconexão vital entre arte e política, e o modo como as melodias e os ritmos podem ser veículos de profunda alteração da sociedade e de suas injustiças inerentes.

Quais são as perspectivas futuras e as novas direções da etnomusicologia?

A etnomusicologia, como um campo em constante evolução, está sempre se adaptando a novos fenômenos musicais e desafios globais, o que aponta para diversas perspectivas futuras e novas direções promissoras. Uma área crescente de interesse é a etnomusicologia das mídias digitais e da cultura online. Com a proliferação de plataformas de streaming, redes sociais e ferramentas de produção musical digital, a etnomusicologia está cada vez mais focada em como a música é criada, distribuída, consumida e experimentada em ambientes virtuais. Isso inclui o estudo de comunidades musicais online, fenômenos de fandom globais, a cultura do remix, e as complexas questões de direitos autorais e monetização na era digital. A pesquisa se estende para a análise de algoritmos de recomendação e o impacto da inteligência artificial na criação musical, abrindo novas fronteiras para a compreensão da música na sociedade digital.

Outra direção importante é a etnomusicologia do Antropoceno e da ecologia sonora. Este campo emergente investiga as interconexões entre a música, o ambiente e as mudanças climáticas. Os etnomusicólogos estão explorando como as paisagens sonoras são afetadas pela atividade humana, como as comunidades usam a música para expressar preocupações ambientais e como as tradições musicais podem estar ameaçadas pela degradação ecológica. A análise se estende à forma como as comunidades indígenas, por exemplo, integram sons da natureza em suas músicas, e como a perda de biodiversidade sonora impacta seus repertórios. A música como resposta à crise ecológica e como meio de reconexão com o mundo natural é um tema central, e a etnomusicologia assume um papel vital na promoção da sustentabilidade sonora e ambiental, reconhecendo o som como um componente essencial da vida no planeta.

A etnomusicologia da saúde e do bem-estar também está ganhando destaque. Esta área explora o papel terapêutico da música em diversas culturas, desde práticas de cura tradicionais até a musicoterapia contemporânea. A pesquisa investiga como a música é utilizada para aliviar o estresse, promover a saúde mental, facilitar a recuperação física e fortalecer o bem-estar comunitário. A etnomusicologia pode contribuir para uma compreensão mais profunda dos sistemas de cura baseados em som em diferentes contextos culturais, e para a aplicação desses conhecimentos em práticas de saúde global. O estudo do impacto fisiológico e psicológico da música, bem como seu papel na construção de comunidades de cuidado, é um campo promissor, com implicações práticas para a aplicação da música em contextos terapêuticos.

Aprofundamento na etnomusicologia colaborativa e pública é outra tendência. Há um crescente reconhecimento da importância de que a pesquisa etnomusicológica seja conduzida em parceria com as comunidades estudadas, e que seus resultados sejam acessíveis e úteis para um público mais amplo. Isso inclui a co-criação de projetos de pesquisa, a produção de documentários, exposições e materiais educativos, e a devolução de arquivos e conhecimentos às comunidades de forma significativa. A ênfase na reciprocidade e na ética da pesquisa continua a moldar a disciplina, promovendo uma etnomusicologia que é não apenas academicamente rigorosa, mas também socialmente engajada e responsável, atuando como um facilitador do empoderamento cultural e da preservação do patrimônio.

A etnomusicologia está também expandindo seu foco para incluir uma análise mais aprofundada da interseccionalidade na música. Isso significa explorar como múltiplas categorias de identidade – como raça, gênero, classe, sexualidade, religião e deficiência – se cruzam e influenciam as práticas musicais e as experiências dos músicos e ouvintes. A disciplina busca desvendar as complexas dinâmicas de poder e privilégio que se manifestam no mundo musical, e como a música pode ser um espaço para a expressão de identidades complexas e a luta por inclusão. A análise interseccional permite uma compreensão mais matizada das experiências musicais e da diversidade da experiência humana na música, e a exploração de vozes e perspectivas que foram historicamente marginalizadas é uma busca contínua.

O desenvolvimento de ferramentas de pesquisa e análise baseadas em inteligência artificial (IA) e aprendizado de máquina (machine learning) representa um futuro potencial, embora com desafios éticos consideráveis. Essas tecnologias podem auxiliar na análise de grandes conjuntos de dados sonoros, na identificação de padrões musicais e na exploração de correlações entre som e cultura em escalas que seriam impossíveis para a análise humana. No entanto, o etnomusicólogo deve permanecer crítico em relação aos vieses inerentes aos algoritmos e garantir que a tecnologia seja usada como uma ferramenta de apoio, e não como um substituto para a compreensão contextualizada e a interação humana. A colaboração entre humanos e máquinas na pesquisa etnomusicológica é uma fronteira a ser explorada com cautela, mas com grande potencial para a descoberta de novos insights.

Em resumo, as perspectivas futuras da etnomusicologia apontam para um campo cada vez mais globalizado, digital, ecologicamente consciente e socialmente engajado. A disciplina continuará a se reinventar, abraçando novas tecnologias e abordagens teóricas, mas sempre mantendo seu compromisso central com a compreensão da música em seu profundo contexto humano e cultural. A etnomusicologia do futuro será aquela que não apenas documenta e analisa, mas também facilita, empodera e contribui para um mundo onde a riqueza da diversidade musical é celebrada e protegida, revelando a contínua relevância da disciplina para a compreensão da condição humana em sua plenitude sonora, e sua capacidade de se adaptar aos desafios emergentes do século XXI.

De que forma a etnomusicologia aborda o patrimônio musical imaterial?

A etnomusicologia desempenha um papel central e insubstituível na abordagem e compreensão do patrimônio musical imaterial, um conceito que se refere às tradições, expressões, conhecimentos e habilidades que são transmitidos de geração em geração e que são parte integrante da identidade cultural de uma comunidade. Ao contrário dos bens materiais (como instrumentos ou partituras antigas), o patrimônio imaterial é vivo e em constante evolução, dependendo da sua prática contínua e da sua transmissão oral ou performática. A etnomusicologia, com sua ênfase no trabalho de campo, na observação participante e na valorização das perspectivas nativas, está singularmente posicionada para documentar, analisar e advogar pela preservação e revitalização dessas formas de expressão musical, que são frequentemente vulneráveis em um mundo de rápida mudança. A compreensão do intangível é uma de suas maiores forças.

A disciplina se preocupa em identificar, documentar e contextualizar essas práticas musicais. Isso envolve a gravação de áudio e vídeo de performances, entrevistas com músicos e membros da comunidade sobre os significados e funções da música, e a coleta de histórias orais e narrativas de vida que se entrelaçam com a tradição musical. O etnomusicólogo busca compreender não apenas as estruturas musicais em si, mas também os processos de aprendizagem e transmissão, as relações entre mestre e aprendiz, e o papel da música em rituais, celebrações e no cotidiano. A detalhada documentação etnográfica é crucial para capturar a complexidade e a vivacidade do patrimônio musical imaterial, e para garantir que ele possa ser estudado e apreciado por futuras gerações, evitando a perda irreparável de conhecimentos.

A etnomusicologia também aborda o patrimônio musical imaterial a partir da perspectiva da agência e da voz das comunidades. Em vez de simplesmente “coletar” músicas, a disciplina contemporânea enfatiza a colaboração e a reciprocidade. Isso significa trabalhar em parceria com os detentores do conhecimento para decidir o que deve ser documentado, como deve ser arquivado e como deve ser compartilhado. As comunidades são reconhecidas como as verdadeiras proprietárias e guardiãs de seu patrimônio, e o etnomusicólogo atua como um facilitador e um mediador. A autodeterminação cultural e o direito das comunidades de gerenciar seu próprio patrimônio são princípios éticos fundamentais, garantindo que a pesquisa não seja extrativista, mas contribua para o fortalecimento e a sustentabilidade das tradições, e a devolução de recursos é um imperativo.

O conceito de patrimônio musical imaterial também levanta questões sobre a comodificação e a descontextualização da música. Quando as músicas tradicionais são inseridas no mercado global ou apresentadas fora de seus contextos rituais, elas podem perder seu significado original e serem reduzidas a meros produtos de entretenimento. A etnomusicologia analisa essas dinâmicas, expondo os riscos da apropriação cultural e do turismo musical irresponsável. A disciplina busca formas de valorizar o patrimônio musical imaterial em seus próprios termos, defendendo práticas de turismo cultural que sejam éticas e beneficiem diretamente as comunidades, além de promover a educação do público sobre a importância do contexto e do respeito cultural. A proteção contra a exploração é uma preocupação contínua.

A etnomusicologia contribui para a formulação de políticas de preservação e salvaguarda do patrimônio musical imaterial, muitas vezes em colaboração com organizações como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O trabalho dos etnomusicólogos é fundamental para a identificação e a nomeação de patrimônios culturais para listas de proteção, bem como para o desenvolvimento de planos de gestão e revitalização que sejam culturalmente apropriados e sustentáveis. A disciplina oferece conhecimentos especializados sobre as práticas de transmissão oral, as estéticas musicais e os sistemas de valorização nativos, que são cruciais para o sucesso dessas iniciativas. A relevância acadêmica e prática se entrelaçam na defesa do patrimônio, e a capacidade de influenciar políticas públicas é uma dimensão importante.

Finalmente, a etnomusicologia também aborda os desafios e as transformações do patrimônio musical imaterial na era da globalização e da tecnologia. As tradições musicais não são estáticas; elas evoluem, adaptam-se e se hibridizam em resposta a novas influências e contextos. A disciplina investiga como o patrimônio é reinterpretado por novas gerações, como as mídias digitais afetam sua transmissão e circulação, e como as comunidades mantêm suas tradições em face da migração e do deslocamento. A vitalidade e a adaptabilidade do patrimônio musical imaterial são reconhecidas, e a etnomusicologia busca compreender a dinâmica entre continuidade e mudança, explorando as estratégias de resiliência cultural e as inovações que garantem a perpetuação da música. A fluidez da tradição é um conceito central da análise.

Em resumo, a etnomusicologia é uma defensora e estudiosa primordial do patrimônio musical imaterial. Através de uma abordagem etnográfica rigorosa, ética colaborativa e um profundo respeito pela autonomia cultural, a disciplina não apenas documenta e analisa essas ricas tradições, mas também contribui ativamente para sua preservação, revitalização e valorização em um mundo que cada vez mais reconhece a importância das expressões culturais intangíveis para a identidade e o bem-estar humano. A etnomusicologia, assim, garante que as vozes e os sons das comunidades do mundo continuem a ressoar, enriquecendo a tapeçaria sonora global e a compreensão da nossa diversidade compartilhada.

Quais são os legados duradouros da etnomusicologia na compreensão humana da música?

Os legados duradouros da etnomusicologia na compreensão humana da música são vastos e profundos, tendo transformado radicalmente a forma como pensamos sobre o som, a cultura e a experiência. Um dos mais significativos é o desmantelamento do etnocentrismo musical. Antes da etnomusicologia, o estudo acadêmico da música era predominantemente focado no cânone ocidental, muitas vezes implicando uma hierarquia onde outras tradições musicais eram consideradas “primitivas” ou inferiores. A etnomusicologia desafiou essa visão estreita, demonstrando a complexidade, a beleza e o valor intrínseco de todas as músicas do mundo, independentemente de sua origem, notação ou instrumentação. Essa ampliação de perspectiva abriu o campo da musicologia para uma riqueza de sons e significados que antes eram ignorados, promovendo uma visão mais democrática e inclusiva do universo musical, onde a diversidade é celebrada como um valor fundamental.

Outro legado crucial é a ênfase na música como fenômeno cultural, e não apenas como um fenômeno puramente estético ou acústico. A etnomusicologia nos ensinou que a música é inseparável de seu contexto social, histórico e comportamental. Ela não é apenas um conjunto de notas e ritmos, mas um sistema de comunicação simbólica, um veículo para a identidade, um meio de ritual, uma forma de protesto e um espelho das relações humanas. Essa abordagem contextualizada transformou a forma como os músicos, educadores e ouvintes compreendem a profundidade da música, revelando suas múltiplas funções e significados na vida cotidiana. A compreensão de que a música é uma ação cultural encarnada é um de seus maiores ensinamentos, e a inseparabilidade entre som e significado é um conceito central.

A etnomusicologia consolidou o trabalho de campo etnográfico como uma metodologia essencial para o estudo da música. Ao priorizar a imersão, a observação participante e as entrevistas diretas com os praticantes da música, a disciplina estabeleceu um padrão para a pesquisa que valoriza a perspectiva emic (nativa) e a experiência vivenciada. Essa metodologia permitiu a coleta de dados ricos e matizados que não poderiam ser obtidos apenas por meio de gravações ou textos, e cultivou uma sensibilidade ética para as comunidades estudadas. O legado do trabalho de campo é a valorização da experiência humana na produção musical e a compreensão de que a música é uma prática social viva, em constante fluxo, e o contato direto com os sujeitos da pesquisa é fundamental para a aquisição de conhecimento.

A disciplina contribuiu significativamente para a compreensão das relações entre música e identidade. A etnomusicologia demonstrou como a música é um poderoso construtor e marcador de identidades étnicas, nacionais, de gênero, religiosas e subculturais. Ela nos mostrou como as comunidades usam a música para afirmar sua singularidade, expressar sua herança, resistir à opressão e forjar laços de pertencimento. O estudo de músicas diaspóricas, de protesto e de subculturas urbanas revelou a capacidade da música de ser um espaço de autoafirmação e empoderamento, um meio de articular quem somos e a que grupos pertencemos em um mundo complexo. A música, assim, não é apenas um reflexo, mas uma força ativa na construção do self e da comunidade, revelando as profundas conexões entre o som e o sentido de ser.

A etnomusicologia também tem sido fundamental na preservação e valorização do patrimônio musical imaterial. Ao documentar e advogar pela proteção de tradições musicais em risco, a disciplina contribui para a salvaguarda de conhecimentos e práticas que são essenciais para a diversidade cultural global. A sua colaboração com organizações internacionais e comunidades locais tem elevado a consciência sobre a importância do patrimônio intangível e promovido práticas éticas de reconhecimento e compartilhamento de benefícios. Esse legado se estende à educação musical, onde a etnomusicologia impulsionou currículos mais inclusivos e uma pedagogia mais culturalmente sensível, preparando as novas gerações para apreciar a riqueza da tapeçaria sonora do mundo. A continuidade da tradição é um objetivo central e um legado duradouro.

A etnomusicologia nos ensinou a ouvir de novas maneiras. Ela nos instigou a ir além da mera escuta passiva, a desenvolver uma escuta ativa e informada, capaz de apreciar as nuances sonoras e os múltiplos significados que a música carrega em diferentes culturas. Essa capacidade de escuta profunda não apenas enriquece a experiência musical individual, mas também promove a empatia intercultural e o diálogo, fomentando um maior respeito pela diversidade da expressão humana. O legado é uma escuta que vai além do que é familiar, que abraça o desconhecido e que busca a compreensão de “outras músicas” em seus próprios termos, sem preconceitos ou julgamentos de valor, abrindo caminhos para a apreciação da alteridade sonora.

Em sua essência, a etnomusicologia deixou um legado de curiosidade ilimitada pela música em todas as suas manifestações, e um compromisso inabalável com a compreensão do som como um aspecto fundamental da condição humana. Ao longo de sua história, ela continuou a se adaptar, a inovar e a expandir suas fronteiras, garantindo que sua contribuição para a compreensão humana da música permaneça relevante e vital. A etnomusicologia não apenas nos ajudou a entender a música, mas a entender a nós mesmos através da música, revelando a profundidade da criatividade humana e a complexidade da experiência sonora que permeia toda a nossa existência. A constante redefinição do que é música e como ela se manifesta é uma de suas maiores e mais persistentes contribuições.

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