Surgimento do Estado Islâmico (ISIS): tudo sobre o caso

Qual a origem ideológica e histórica do ISIS?

O Estado Islâmico do Iraque e da Síria, conhecido como ISIS, ISIL, ou simplesmente Daesh, não surgiu do vácuo. Suas raízes ideológicas profundas remontam a uma interpretação radical do islamismo sunita, particularmente o salafismo jihadista. Essa corrente prega o retorno a uma suposta pureza original do Islã, rejeitando inovações e influências ocidentais. A visão do ISIS é uma versão extremista e intransigente dessa ideologia, que justifica a violência extrema contra aqueles que considera apóstatas ou inimigos do Islã, incluindo outras vertentes muçulmanas e não-muçulmanos. A construção de um califado global, governado por uma lei islâmica estrita (Sharia), é o objetivo central que impulsiona suas ações.

Historicamente, a gênese do ISIS pode ser rastreada até o grupo Jama’at al-Tawhid wal-Jihad (Organização do Monoteísmo e Jihad), fundado em 1999 pelo militante jordaniano Abu Musab al-Zarqawi. Zarqawi era um veterano da guerra soviético-afegã e um radical anti-ocidental que estabeleceu uma rede de combatentes no Afeganistão antes de se mudar para o Iraque. Seu grupo era notório por sua brutalidade e táticas de terror, incluindo decapitações e ataques suicidas. A ideologia de Zarqawi, embora alinhada ao jihadismo, era distintamente mais sectária que a da Al-Qaeda na época, visando diretamente os muçulmanos xiitas como inimigos tão perigosos quanto os ocidentais.

Após a invasão do Iraque em 2003, o grupo de Zarqawi rapidamente ganhou força no caos pós-invasão. Ele se tornou um dos principais atores da insurgência iraquiana contra as forças de coalizão e o novo governo iraquiano. Em 2004, Zarqawi jurou lealdade a Osama bin Laden, líder da Al-Qaeda, e seu grupo foi renomeado para Al-Qaeda no Iraque (AQI). Essa afiliação proporcionou ao grupo uma legitimidade jihadista global e acesso a redes operacionais mais amplas, mas também marcou o início de tensões ideológicas e estratégicas com a liderança central da Al-Qaeda devido à extrema violência sectária de Zarqawi, que a Al-Qaeda considerava prejudicial à sua causa mais ampla.

Mesmo após a morte de Zarqawi em 2006, o AQI continuou a evoluir, culminando na formação do Estado Islâmico do Iraque (ISI) sob a liderança de Abu Omar al-Baghdadi. O ISI foi uma tentativa de estabelecer um proto-estado no Iraque, utilizando a violência e a intimidação para controlar territórios e populações. Embora inicialmente enfraquecido pela “onda” de tropas americanas e pela oposição de milícias sunitas locais (os Sahwa ou “Despertar”) na década de 2000, a organização nunca foi completamente erradicada. A retirada das tropas americanas em 2011 e a política sectária do governo iraquiano, que marginalizava os sunitas, criaram as condições perfeitas para um ressurgimento ainda mais virulento e perigoso.

Quem foram os principais líderes no início da formação do grupo?

A liderança do ISIS, em suas fases iniciais e de consolidação, foi marcada por figuras carismáticas e extremamente violentas, cada uma contribuindo para a evolução e expansão do grupo. Abu Musab al-Zarqawi foi, sem dúvida, a figura fundadora e o catalisador inicial. Sua visão impiedosa e a sua liderança de uma guerrilha urbana com uma brutalidade sem precedentes no Iraque do pós-invasão definiram o tom para o que viria a ser o ISIS. Zarqawi foi o arquiteto da campanha de terror sectário contra a maioria xiita do Iraque, uma tática que alienou muitos, mas galvanizou os mais radicais. Ele foi o motor por trás do grupo Jama’at al-Tawhid wal-Jihad antes de sua afiliação formal com a Al-Qaeda.

Após a morte de Zarqawi em um ataque aéreo dos EUA em 2006, a liderança passou para Abu Omar al-Baghdadi. Sob a sua égide, o grupo de Zarqawi se transformou no Estado Islâmico do Iraque (ISI). Abu Omar al-Baghdadi tentou legitimar a existência do grupo como uma entidade estatal, nomeando um gabinete e buscando governar o território que controlava, mesmo que de forma rudimentar. Ele focou na consolidação das diversas facções jihadistas e insurgentes sob uma única bandeira, apresentando o ISI não apenas como um grupo terrorista, mas como uma alternativa de governo. Essa transição foi um passo crucial para a evolução de uma rede terrorista para uma entidade quase-estatal com ambições territoriais.

O sucessor de Abu Omar al-Baghdadi foi Abu Bakr al-Baghdadi, a figura mais conhecida e o autoproclamado califa do Estado Islâmico. Ele assumiu o comando do ISI em 2010, quando o grupo estava em seu ponto mais fraco, após a “onda” de tropas americanas e a formação das milícias sunitas Sahwa. Abu Bakr al-Baghdadi, um ex-prisioneiro em Camp Bucca, demonstrou uma habilidade organizacional notável e uma visão estratégica de longo prazo. Ele reconstruiu as redes do grupo e capitalizou a instabilidade regional, particularmente a guerra civil na Síria, para expandir sua influência. Sua liderança foi marcada por uma expansão territorial agressiva e uma campanha de propaganda altamente sofisticada.

A liderança de Abu Bakr al-Baghdadi culminou na audaciosa proclamação do califado em 2014, um evento que chocou o mundo e solidificou o status do ISIS como uma ameaça global. Ele foi auxiliado por um círculo interno de comandantes e estrategistas, muitos deles ex-oficiais do regime de Saddam Hussein, que trouxeram consigo experiência militar e de inteligência. Figuras como Abu Ali al-Anbari e Abu Muslim al-Turkmani foram cruciais na estrutura administrativa e militar. A capacidade de Al-Baghdadi de atrair e integrar esses elementos experientes, combinada com uma ideologia radical e a exploração de vácuos de poder, permitiu que o ISIS se transformasse em uma força formidável e sem precedentes em sua ambição e capacidade de expansão.

Como a invasão do Iraque em 2003 influenciou o surgimento do ISIS?

A invasão do Iraque pelos EUA e seus aliados em 2003 foi um ponto de inflexão catastrófico que inadvertidamente plantou as sementes para o surgimento do ISIS. A decisão de desmantelar completamente o Estado iraquiano, incluindo a dissolução do exército e a purgação dos membros do partido Baath, criou um vácuo de poder imenso e uma massa de descontentamento. Milhares de soldados e oficiais militares altamente treinados, que haviam perdido seus empregos e status, juntaram-se à insurgência, muitos deles trazendo consigo valiosa experiência de combate, inteligência e organização. Essa desestabilização completa do Iraque foi um erro estratégico monumental que gerou um ambiente propício para a radicalização e o extremismo.

A política de “desbaathificação” e a subsequente marginalização da população sunita foram fatores cruciais. A exclusão de uma parcela significativa da sociedade iraquiana do novo arranjo político gerou um profundo sentimento de injustiça e perseguição entre os sunitas. Essa comunidade, que tradicionalmente detinha o poder sob Saddam Hussein, viu-se subitamente sem representação e sob um governo dominado por xiitas. O governo iraquiano, apoiado pelos EUA, adotou políticas que exacerbaram as tensões sectárias, como a demissão de sunitas de cargos públicos e a perseguição de ex-membros do partido Baath. Essa alienação e desempoderamento tornaram muitos sunitas receptivos à retórica anti-governamental e jihadista, que prometia restaurar sua dignidade e poder. O crescimento da insurgência sunita se tornou um reflexo direto dessa profunda insatisfação.

O caos e a anarquia que se seguiram à invasão permitiram que grupos jihadistas, como o Jama’at al-Tawhid wal-Jihad de Zarqawi, prosperassem. Sem um governo central forte e com as forças de segurança iraquianas em desordem, o país se tornou um campo de treinamento e uma base de operações para esses grupos. A presença de forças de ocupação estrangeiras também serviu como um poderoso ímã para jihadistas de todo o mundo, fornecendo um inimigo claro e um campo de batalha para a jihad. A violência diária, incluindo ataques terroristas e confrontos entre insurgentes e forças da coalizão, desestabilizou ainda mais a sociedade e normalizou a brutalidade, criando um ciclo vicioso de retaliação e vingança que alimentou o extremismo.

A invasão também resultou na criação de prisões superlotadas, como Camp Bucca, que se tornaram verdadeiras “universidades do jihadismo”. Nesses centros de detenção, militantes de diferentes facções, incluindo jihadistas e ex-oficiais baathistas, foram confinados juntos, permitindo a troca de conhecimentos, o estabelecimento de redes e a radicalização mútua. Foi em Camp Bucca que muitos dos futuros líderes do ISIS, incluindo Abu Bakr al-Baghdadi e vários de seus comandantes, se conheceram e formaram alianças estratégicas. Esse ambiente de privação e doutrinação serviu como um incubador para a próxima geração de extremistas, que emergiriam com uma organização mais coesa e uma visão mais ambiciosa para o Estado Islâmico. A fragmentação do Estado iraquiano foi, em retrospectiva, o maior presente que os EUA poderiam ter dado a esses grupos.

Qual o papel da Al-Qaeda na gênese do Estado Islâmico?

A Al-Qaeda desempenhou um papel ambivalente e complexo na gênese do Estado Islâmico, sendo simultaneamente um precursor, um mentor e, finalmente, um rival ferrenho. Inicialmente, a afiliação do grupo de Abu Musab al-Zarqawi, o Jama’at al-Tawhid wal-Jihad, com a Al-Qaeda em 2004, renomeando-o para Al-Qaeda no Iraque (AQI), conferiu-lhe uma legitimidade internacional e acesso a uma rede global de apoio e recrutamento. Essa aliança elevou o perfil de Zarqawi de um líder insurgente local para uma figura central na jihad global. A Al-Qaeda de Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri viu no AQI uma oportunidade de expandir sua influência e estabelecer uma frente no Iraque, um novo campo de batalha contra o Ocidente.

Contudo, a relação entre a liderança central da Al-Qaeda e o AQI era frequentemente tensa e marcada por profundas divergências ideológicas e táticas. A Al-Qaeda, embora brutal, era mais pragmática e visava principalmente ataques contra o “inimigo distante” (o Ocidente e seus aliados), buscando evitar a alienação das populações muçulmanas. Zarqawi, por outro lado, priorizava o “inimigo próximo” – especificamente os muçulmanos xiitas, que ele considerava apóstatas – e não hesitava em empregar uma violência sectária indiscriminada. Essa divergência causou preocupação na liderança da Al-Qaeda, que temia que a brutalidade de Zarqawi e sua matança de civis muçulmanos prejudicassem a causa jihadista mais ampla. As cartas de Bin Laden e Zawahiri a Zarqawi revelam essa frustração e desaprovação em relação à sua extrema violência e foco sectário.

Após a morte de Zarqawi em 2006, o AQI evoluiu para o Estado Islâmico do Iraque (ISI) sob Abu Omar al-Baghdadi. Embora ainda nominalmente afiliado à Al-Qaeda, o ISI já demonstrava uma autonomia crescente e uma ambição de estabelecer um califado que ia além dos objetivos da Al-Qaeda. A liderança central da Al-Qaeda, enfraquecida por ataques de drones e pela perda de seus principais comandantes no Afeganistão e Paquistão, tinha menos controle sobre suas filiais. Essa perda de controle central permitiu que o ISI, e posteriormente o ISIS, desenvolvesse sua própria interpretação do jihadismo, com um foco renovado na construção de um “estado” territorial e na imposição de sua visão radical da lei islâmica.

O rompimento final ocorreu em 2013, quando Abu Bakr al-Baghdadi, líder do ISI, tentou incorporar a frente jihadista na Síria, Jabhat al-Nusra, sob seu comando, sem consultar a liderança central da Al-Qaeda. Zawahiri, que havia ordenado que os dois grupos operassem separadamente, denunciou publicamente o ISIS, renegando sua afiliação. Essa ruptura formal marcou o ponto sem retorno, com o ISIS emergindo como uma entidade jihadista independente e, em muitos aspectos, mais radical e ambiciosa do que a própria Al-Qaeda. O legado da Al-Qaeda, contudo, permanece na formação inicial de quadros, na rede de jihadistas e na ideologia global que o ISIS, embora de forma distorcida, herdou e levou a um novo patamar de brutalidade e organização.

Como a Guerra Civil Síria se tornou um catalisador para o crescimento do ISIS?

A Guerra Civil Síria, iniciada em 2011, foi o catalisador perfeito para o ressurgimento e a ascensão meteórica do ISIS, que na época ainda era conhecido como Estado Islâmico do Iraque (ISI). A brutal repressão do regime de Bashar al-Assad aos protestos pacíficos transformou-se em um conflito armado multifacetado, criando um vácuo de segurança massivo e uma oportunidade sem precedentes para grupos extremistas. Com a atenção do mundo voltada para o Iraque e o Afeganistão, e a Síria mergulhando no caos, as fronteiras se tornaram porosas, e o ISIS pôde facilmente transferir combatentes, armas e recursos do Iraque para o território sírio. A ausência de um controle estatal efetivo na Síria Oriental e a proliferação de milícias e grupos rebeldes fragmentados abriram caminho para a infiltração.

O ambiente caótico da Síria ofereceu ao ISIS uma oportunidade de ouro para expandir, recrutar e consolidar seu poder longe dos olhos do mundo e com menor pressão militar. O grupo explorou as divisões sectárias e a frustração da população sunita síria, que se sentia oprimida pelo regime de Assad, dominado pela minoria alawita. O ISIS se apresentou como um defensor dos sunitas e o único grupo capaz de impor ordem e justiça em meio ao colapso. Ele conseguiu cooptar e absorver diversas facções insurgentes menores, prometendo recursos, disciplina e uma visão ideológica clara. Essa capacidade de capitalizar o descontentamento e a anarquia foi crucial para sua rápida expansão territorial e para a criação de um “califado” viável.

A multiplicidade de atores no conflito sírio – o regime de Assad, diversas facções rebeldes (moderadas e radicais), as forças curdas e, posteriormente, potências internacionais – criou um cenário complexo que o ISIS soube manipular. Ele se engajou em combates seletivos, muitas vezes atacando grupos rebeldes rivais e as forças curdas, enquanto evitava confrontos diretos e prolongados com o regime de Assad em certas fases, ou mesmo se beneficiando indiretamente das ações do regime que desestabilizavam os demais. Essa estratégia de “dividir para conquistar” e a exploração das fraquezas dos inimigos permitiram ao ISIS controlar vastas áreas, incluindo campos de petróleo e infraestruturas vitais. A ausência de uma estratégia unificada e eficaz contra o ISIS por parte da comunidade internacional nos primeiros anos do conflito sírio foi um fator determinante em sua ascensão.

A Síria também se tornou um laboratório para o ISIS refinar suas táticas militares e administrativas. Com acesso a recursos humanos e materiais, e a pouca resistência em algumas áreas, o grupo conseguiu estabelecer estruturas de governança rudimentares, cobrar impostos, operar tribunais e fornecer serviços básicos em territórios sob seu controle. Isso deu credibilidade à sua reivindicação de ser um “estado” e atraiu ainda mais combatentes estrangeiros, que buscavam uma “terra pura” para a jihad. A capacidade de operar em um ambiente sem lei e de atrair um fluxo constante de combatentes de todo o mundo, combinado com a experiência de combate adquirida no Iraque, transformou o ISIS em uma força militar e ideológica sem precedentes na região e além.

Qual a importância da proclamação do califado em 2014?

A proclamação do califado por Abu Bakr al-Baghdadi em junho de 2014, de uma mesquita em Mossul, foi um momento divisor de águas na história do ISIS e do terrorismo global. Este ato audacioso, anunciando o estabelecimento de um “califado” no território sob seu controle no Iraque e na Síria, elevou o grupo de uma organização terrorista regional a uma entidade com aspirações globais e uma reivindicação de liderança sobre todos os muçulmanos. A proclamação do califado não era apenas um gesto simbólico; era uma declaração de intenções que visava atrair muçulmanos de todo o mundo a se juntarem ao ISIS, prometendo a restauração de uma era de glória islâmica. A audácia dessa declaração ressoou profundamente com aqueles que acreditavam em uma visão utópica e puritana do Islã.

A implicação mais imediata da proclamação do califado foi a legitimação ideológica que ela conferiu ao ISIS. Para muitos radicais, o califado é a única forma legítima de governo islâmico, e sua ausência por séculos era vista como uma fonte de humilhação e declínio para a Ummah (comunidade muçulmana global). Ao proclamar-se “califa”, Al-Baghdadi posicionou-se como o líder legítimo de todos os muçulmanos, exigindo a lealdade de jihadistas e muçulmanos em todo o mundo. Isso gerou um fluxo sem precedentes de combatentes estrangeiros, que se sentiram compelidos a migrar para o “Estado Islâmico” para viver sob a lei do califado e participar da construção dessa nova ordem. A mensagem de um califado restaurado foi um poderoso chamariz para os desiludidos e os ideologicamente comprometidos.

A proclamação também consolidou o modelo de “estado” do ISIS. Diferente de outros grupos terroristas que operam em células clandestinas, o ISIS aspirava a ser um governo, administrando cidades, fornecendo serviços (mesmo que rudimentares) e impondo sua versão draconiana da lei islâmica. O califado ofereceu uma estrutura organizacional hierárquica e uma pretensão de soberania que permitiu ao ISIS gerir um território vasto, com recursos econômicos significativos, incluindo campos de petróleo, impostos e saques. Essa capacidade de “governar” deu ao ISIS uma vantagem sobre outros grupos, permitindo-lhe planejar operações a longo prazo, treinar combatentes e gerir uma burocracia complexa. O foco na construção de um estado distinguia o ISIS de maneira fundamental de seus antecessores.

Finalmente, a proclamação do califado teve um impacto psicológico e estratégico profundo. Ela demonstrou a capacidade do ISIS de desafiar as fronteiras existentes e a ordem internacional. A bandeira negra do califado se tornou um símbolo de terror e de uma ambição ilimitada. Isso provocou uma resposta internacional tardia, mas robusta, incluindo a formação de uma coalizão global para combater o ISIS. No entanto, o dano já estava feito. O conceito do califado não apenas legitimou a violência extrema para muitos, mas também serviu como um modelo aspiracional para filiais e apoiadores do ISIS em outras partes do mundo, inspirando ataques terroristas longe de suas fronteiras. A reivindicação de autoridade universal e a implantação de uma infraestrutura estatal foram as verdadeiras inovações da proclamação de Al-Baghdadi.

Quais foram as principais estratégias militares e táticas de terror utilizadas pelo ISIS?

As estratégias militares do ISIS combinavam táticas de insurgência e terrorismo com o uso de capacidades de um exército convencional, o que o tornava um adversário excepcionalmente perigoso. O grupo utilizava ataques surpresa e rápidos, geralmente com o uso de veículos-bomba (VBIEDs) e homens-bomba para romper as linhas inimigas, seguidos por ondas de infantaria leve e veículos artilhados. A coordenação e o uso de mapas militares detalhados, herdados em parte de ex-oficiais do regime de Saddam Hussein, permitiam manobras complexas e a captura de grandes áreas. A exploração de fraquezas e vácuos de poder em territórios governados precariamente ou com forças militares desorganizadas era uma constante. A organização e o planejamento eram cruciais para o seu sucesso inicial.

Além das táticas de combate direto, o ISIS era mestre na guerra psicológica e na intimidação. A exibição pública de brutalidade era uma tática central para aterrorizar as populações locais e os inimigos. Decapitações, execuções em massa, crucificações e a destruição de patrimônio histórico e religioso eram filmadas e disseminadas amplamente nas redes sociais. O objetivo era incutir medo, demonstrar a incapacidade dos governos em proteger seus cidadãos e forçar a submissão. Essa propaganda de terror não apenas controlava as populações sob seu domínio, mas também servia como uma ferramenta de recrutamento, atraindo indivíduos que se identificavam com a visão de um poder implacável e purificador. A eficácia da violência extrema como ferramenta de controle foi inegável.

O ISIS também empregava uma estratégia de “terra arrasada” quando confrontado com o avanço inimigo. Ao se retirar de áreas, o grupo frequentemente destruía infraestruturas, plantava minas e armadilhas explosivas (IEDs) em edifícios e estradas, e transformava cidades em armadilhas mortais para as forças de libertação e para os civis que tentavam retornar. Essa tática de guerra urbana prolongada, como visto na Batalha de Mossul, visava infligir o máximo de baixas possíveis e dificultar a restauração da normalidade, mesmo após sua derrota militar. A capacidade de adaptação e a falta de qualquer consideração pela vida humana ou patrimônio tornavam o ISIS um inimigo implacável.

Finalmente, a estratégia do ISIS incluía a expansão via filiais e a inspiração de ataques terroristas em nível global. Mesmo enquanto seu califado territorial encolhia, o grupo incentivava seus apoiadores a realizar ataques “lobos solitários” ou por células afiliadas em países ocidentais e em outras regiões do mundo. A propaganda online desempenhava um papel crucial nessa estratégia, fornecendo orientação e inspiração para ataques que variavam de esfaqueamentos a atentados com veículos. Essa descentralização do terror permitiu que o ISIS mantivesse sua presença e sua capacidade de influenciar eventos, mesmo após sua derrota militar no Iraque e na Síria. A disseminação de sua ideologia e o uso de redes sociais para incitação foram tão importantes quanto suas táticas militares no campo de batalha.

Como o ISIS conseguiu financiar suas operações e expandir seu território?

O ISIS conseguiu financiar suas operações e expandir seu território através de uma combinação de métodos diversos, que o diferenciavam de outros grupos terroristas. Diferente da Al-Qaeda, que dependia mais de doações externas, o ISIS construiu uma economia autossustentável em grande parte através da exploração de recursos naturais e da imposição de taxas. O petróleo era, sem dúvida, a principal fonte de receita. O grupo controlava vários campos de petróleo e gás no Iraque e na Síria, vendendo o petróleo bruto a preços reduzidos para intermediários, que por sua vez o comercializavam no mercado negro. Essa capacidade de extração e comercialização de recursos naturais permitiu ao ISIS gerar milhões de dólares diariamente, financiando suas operações militares, pagando seus combatentes e mantendo sua infraestrutura.

A extorsão e a imposição de impostos draconianos sobre as populações sob seu controle eram outras fontes vitais de financiamento. O ISIS instituiu um sistema de tributação abrangente, cobrando zakat (caridade islâmica), taxas sobre bens e serviços, e multas. Empresas, fazendeiros e comerciantes eram obrigados a pagar para operar. Aqueles que não cumpriam eram severamente punidos. O grupo também se beneficiava do saque de bancos em cidades conquistadas, como Mossul, e da venda de artefatos arqueológicos roubados no mercado negro global. A exploração de recursos humanos e culturais era uma faceta sombria de sua economia, que servia tanto para gerar fundos quanto para destruir o patrimônio local.

O sequestro para resgate também era uma tática lucrativa. O ISIS realizava sequestros de cidadãos estrangeiros e locais, exigindo grandes somas de dinheiro para sua libertação. Embora muitos países ocidentais tenham uma política de não pagar resgates, outros governos ou famílias pagaram, involuntariamente financiando o grupo. Essa prática não apenas gerava fundos, mas também era uma ferramenta de propaganda, com as execuções filmadas servindo para aterrorizar a comunidade internacional e as populações. A brutalidade como negócio era uma característica marcante do ISIS.

Para expandir seu território, o financiamento robusto permitiu ao ISIS adquirir armamentos, veículos e pagar salários competitivos a seus combatentes, o que atraía recrutas. A capacidade de autossustentação significava que o grupo não era vulnerável às pressões externas de corte de financiamento, como outras organizações terroristas. A gestão de uma economia de guerra, embora brutal e ilegal, foi um fator crítico para a sua resiliência e para a extensão de seu domínio territorial. A disciplina financeira e a diversificação de suas fontes de receita, combinadas com a exploração de vácuos de poder e o terror, criaram uma máquina de guerra que levou anos para ser desmantelada. A complexidade e a escala de suas operações financeiras demonstraram uma capacidade organizacional que surpreendeu muitos analistas.

Qual o uso da propaganda e das redes sociais na estratégia do grupo?

O ISIS foi pioneiro e mestre no uso da propaganda e das redes sociais, transformando-as em uma arma estratégica tão poderosa quanto suas táticas militares. A sua abordagem era multifacetada e altamente sofisticada, aproveitando a natureza global e instantânea da internet para disseminar sua mensagem. A produção de conteúdo era de alta qualidade cinematográfica, com vídeos bem editados, trilhas sonoras dramáticas e gráficos profissionais. Essa estética visava emular produções de Hollywood, tornando o conteúdo mais envolvente e atraente para um público jovem e global. A produção de material profissional era uma prioridade, contrastando com a propaganda mais rudimentar de outros grupos jihadistas.

A estratégia de propaganda do ISIS focava em diversos pilares. Primeiramente, a glorificação da violência: vídeos de execuções brutais e atos de terror eram divulgados para aterrorizar inimigos e solidificar o controle sobre as populações. Em contraste, havia também um lado utópico: vídeos mostrando a “vida normal” sob o califado, com hospitais, escolas e serviços, visando atrair famílias e profissionais. Essa dupla narrativa de terror e utopia buscava tanto inspirar medo quanto atrair simpatizantes, apresentando o ISIS como um estado funcional e justo para aqueles que se submetessem. A capacidade de apresentar um “paraíso” e um “inferno” simultaneamente era um diferencial.

As redes sociais, como Twitter, Facebook, YouTube e, mais tarde, Telegram, eram o principal veículo para a disseminação de sua propaganda. O ISIS utilizava uma rede de contas-bot, voluntários e “influenciadores” digitais para amplificar sua mensagem, driblando as tentativas de censura das plataformas. Eles incentivavam seus seguidores a compartilhar o conteúdo, gerando um efeito viral e alcançando milhões de pessoas em todo o mundo. A capacidade de operar em múltiplas plataformas simultaneamente e de se adaptar rapidamente às mudanças nas políticas de moderação das redes sociais demonstrava uma agilidade e expertise tecnológica impressionantes. O uso estratégico da internet transformou o recrutamento e a radicalização.

O objetivo final dessa máquina de propaganda era recrutar combatentes estrangeiros, inspirar ataques terroristas em países ocidentais e demonizar seus inimigos. A narrativa do ISIS apelava para a busca por um propósito, por justiça contra opressores percebidos e por uma identidade coletiva. Eles prometiam uma aventura e uma vida com significado na construção do califado. A propagação de ideologia radical e a incitação à violência se tornaram uma ameaça global, transformando indivíduos comuns em terroristas “lobos solitários” ou recrutas para as fileiras do grupo. A eficácia da propaganda do ISIS na mobilização de apoio e na inspiração de violência continua sendo um estudo de caso sombrio no poder da comunicação digital.

Quais foram os principais crimes contra a humanidade e atrocidades cometidas pelo ISIS?

O ISIS é responsável por uma litania chocante de crimes contra a humanidade e atrocidades, muitas das quais foram documentadas e executadas com a intenção de aterrorizar e subjugar populações. Entre os mais notórios estão os massacres sistemáticos de minorias étnicas e religiosas. O genocídio da comunidade Yazidi no Iraque em 2014 é um exemplo brutal. Milhares de homens Yazidis foram executados sumariamente, mulheres e meninas foram sequestradas e escravizadas sexualmente, e crianças foram doutrinadas e usadas como soldados. A perseguição não se limitou aos Yazidis; cristãos, Shabaks, Kakais e turcomanos xiitas também foram alvos de extermínio e perseguição religiosa, forçados a converter-se, pagar impostos especiais ou enfrentar a morte.

A escravidão, especialmente a escravidão sexual de mulheres e meninas Yazidis, foi uma das atrocidades mais hediondas do ISIS. O grupo estabeleceu um mercado de escravos formal, vendendo e trocando mulheres e crianças em uma violação flagrante de todas as normas internacionais de direitos humanos. Essas vítimas eram submetidas a estupros, tortura e condições desumanas, testemunhando a barbárie e a depravação que o grupo impunha sob o pretexto de sua interpretação distorcida da lei islâmica. A escravização foi uma estratégia deliberada para desumanizar e controlar populações, além de uma fonte de receita para o grupo.

As execuções em massa e a violência pública eram táticas centrais para o controle territorial do ISIS. Vídeos de decapitações de reféns ocidentais, pilotos jordanianos queimados vivos em uma jaula, e as execuções em massa de soldados iraquianos e sírios eram rotineiramente divulgados para instilar medo e demonstrar a crueldade implacável do grupo. Cidades como Tikrit e Mossul testemunharam valas comuns de centenas ou milhares de vítimas. A brutalidade espetacular servia como uma forma de terrorismo psicológico, impedindo qualquer forma de dissidência ou resistência. A exibição pública da violência foi um método de controle social e de propaganda.

Além da violência física, o ISIS também se dedicou à destruição deliberada de patrimônio cultural e histórico, especialmente em locais considerados “idólatras” ou “heréticos” segundo sua ideologia. Antigas cidades como Nimrud e Palmira, e museus como o de Mossul, foram saqueados e depois demolidos, com a destruição sendo filmada e divulgada. Templos, igrejas e santuários xiitas foram dinamitados. Essa destruição cultural sistemática visava apagar a história e a identidade das populações que subjugavam, impondo sua própria narrativa e obliterando qualquer vestígio de pluralidade religiosa ou cultural. A erradicação da memória histórica era uma extensão de sua campanha de terror.

• Genocídio e Limpeza Étnica/Religiosa: Perseguição e extermínio de Yazidis, cristãos, xiitas e outras minorias.
• Escravidão e Escravidão Sexual: Sequestro e subjugação de mulheres e meninas, especialmente Yazidis, para fins de escravidão sexual.
• Execuções em Massa e Públicas: Decapitações, fuzilamentos em massa, crucificações e queimas de reféns, divulgadas em vídeos de propaganda.
• Destruição de Patrimônio Cultural: Demolição e saque de sítios arqueológicos, templos, igrejas e museus, como Nimrud e Palmira.
• Uso de Crianças Soldado: Recrutamento, doutrinação e uso de crianças em combates, execuções e propaganda.
• Tortura e Punições Brutais: Imposição de amputações, açoitamentos e outras formas de tortura sob a interpretação draconiana da Sharia.
• Violência contra Homossexuais: Execuções públicas de indivíduos acusados de homossexualidade, muitas vezes atirados de telhados de edifícios.

Como a comunidade internacional reagiu à ascensão do ISIS?

A reação da comunidade internacional à ascensão do ISIS foi inicialmente lenta e fragmentada, mas evoluiu para uma resposta militar e diplomática coordenada à medida que a extensão da ameaça se tornou inegável. Nos primeiros anos da Guerra Civil Síria e do ressurgimento do ISIS no Iraque, a atenção estava dividida e havia uma hesitação em intervir diretamente após as experiências do Iraque e Afeganistão. Muitos observadores subestimaram a capacidade do grupo de se expandir e governar. No entanto, a brutalidade e a proclamação do califado em 2014, seguidas pela execução de cidadãos ocidentais, serviram como um alerta global, forçando uma reavaliação da ameaça e uma ação mais decisiva.

Em agosto de 2014, os Estados Unidos iniciaram ataques aéreos contra o ISIS no Iraque, seguidos por ataques na Síria no mês seguinte. Rapidamente, uma Coalizão Global para Combater o ISIS foi formada, envolvendo dezenas de países, incluindo nações europeias, árabes e outros aliados. A coalizão forneceu apoio aéreo, treinamento e equipamento para forças locais no terreno, como o Exército Iraquiano e as Forças Democráticas Sírias (SDF), lideradas por curdos. A estratégia era principalmente de apoio aéreo e capacitação local, evitando o envio de grandes contingentes de tropas terrestres. A coordenação militar e de inteligência se tornou uma prioridade para muitos países.

Além da ação militar, a comunidade internacional implementou sanções financeiras severas para cortar as fontes de receita do ISIS, visando suas redes de petróleo, impostos e atividades criminosas. Houve um esforço global para combater a propaganda e o recrutamento online do ISIS, com plataformas de tecnologia e governos trabalhando para remover conteúdo extremista. No entanto, a natureza adaptativa do ISIS e sua capacidade de usar novas plataformas e métodos dificultaram esses esforços. A troca de inteligência e a cooperação policial também aumentaram para prevenir ataques terroristas inspirados pelo ISIS em países ocidentais. A mobilização contra o financiamento do terrorismo foi uma frente crucial.

A resposta diplomática incluiu resoluções do Conselho de Segurança da ONU condenando o ISIS e exigindo medidas para combatê-lo. No entanto, a complexidade da Guerra Civil Síria, com a presença de múltiplos atores e interesses conflitantes (como o papel do regime de Assad, o apoio da Rússia e do Irã a Assad, e as tensões entre a Turquia e os curdos), dificultou uma estratégia política unificada e de longo prazo para estabilizar a região. Apesar dos avanços militares, a falta de uma solução política abrangente para a Síria e as divisões no Iraque significaram que as condições que permitiram o surgimento do ISIS ainda persistiam. A natureza multifacetada da ameaça exigiu uma resposta complexa e coordenada, que, embora eficaz militarmente, teve limites políticos.

Quais países foram mais impactados pela expansão do ISIS?

A expansão do ISIS impactou de forma mais severa o Iraque e a Síria, os dois países onde o grupo estabeleceu seu autoproclamado califado territorial. No Iraque, o ISIS aproveitou a fragilidade do governo pós-invasão e as profundas divisões sectárias para conquistar vastas áreas, incluindo a segunda maior cidade do país, Mossul, em 2014. A ofensiva do grupo levou ao colapso de várias divisões do exército iraquiano e à perda de grandes porções do território no oeste e norte do país. O impacto foi catastrófico para a população, que sofreu com a brutalidade do regime do ISIS, o deslocamento forçado e a destruição generalizada. O Estado iraquiano foi seriamente ameaçado em sua própria existência, exigindo intervenção internacional urgente para conter o avanço do grupo.

Na Síria, o cenário era ainda mais complexo, pois o país já estava mergulhado em uma guerra civil brutal. O ISIS explorou o caos e a fragmentação do poder para consolidar seu controle sobre grandes extensões de território no leste e centro da Síria, particularmente na província de Raqqa, que se tornou a capital de fato de seu califado. O grupo não apenas lutou contra o regime de Assad, mas também contra outros grupos rebeldes e as forças curdas, tornando o conflito ainda mais multifacetado. A Síria sofreu uma destruição incalculável de infraestrutura, um êxodo massivo de sua população e a perda de controle governamental em grande parte de seu território. O impacto humanitário e a desestabilização da Síria foram sem precedentes.

Além do Iraque e da Síria, países vizinhos como a Turquia, a Jordânia e o Líbano foram diretamente impactados pela crise de refugiados, com milhões de sírios e iraquianos buscando abrigo em seus territórios, colocando uma pressão imensa sobre seus recursos e infraestruturas. Esses países também enfrentaram a ameaça de infiltração de terroristas e a realização de ataques dentro de suas fronteiras, inspirados ou dirigidos pelo ISIS. A Turquia, em particular, foi alvo de vários ataques terroristas e se envolveu diretamente no conflito sírio, buscando conter a ameaça do ISIS e das forças curdas. A instabilidade regional se espalhou rapidamente para além das fronteiras do califado.

Globalmente, a expansão do ISIS inspirou e reivindicou a autoria de ataques terroristas em dezenas de países, desde capitais europeias como Paris, Bruxelas e Londres, até cidades nos Estados Unidos, Rússia e países do Sudeste Asiático e da África. O uso de propaganda online e a capacidade de inspirar “lobos solitários” ou células afiliadas significaram que nenhum país estava imune à sua influência. Grupos jihadistas em outras partes do mundo, como no Egito (Sinai), Líbia, Afeganistão, Nigéria (Boko Haram) e Filipinas, juraram lealdade ao ISIS, estabelecendo “províncias” (wilayat) do califado, estendendo o alcance ideológico e operacional do grupo muito além de seu território central. O impacto do ISIS se tornou global, redefinindo a paisagem do terrorismo internacional.

Qual o papel das forças curdas na luta contra o Estado Islâmico?

As forças curdas desempenharam um papel absolutamente crucial e muitas vezes decisivo na luta contra o Estado Islâmico, atuando como uma das forças terrestres mais eficazes e confiáveis para a coalizão internacional. No Iraque, os Peshmerga curdos defenderam sua Região Autônoma do Curdistão e colaboraram com as forças iraquianas e a coalizão para libertar territórios capturados pelo ISIS. Eles foram os primeiros a enfrentar o avanço brutal do ISIS em 2014, quando o exército iraquiano colapsou em algumas frentes, e os Peshmerga se tornaram um baluarte contra o avanço jihadista. A sua resiliência e determinação foram fundamentais para conter a primeira onda de expansão do grupo.

Na Síria, as Unidades de Proteção Popular (YPG), a principal força militar curda, e mais tarde as Forças Democráticas Sírias (SDF), uma aliança liderada pelos curdos e que incluía combatentes árabes e assírios, foram a espinha dorsal da luta terrestre contra o ISIS. Com o apoio aéreo e logístico da coalizão liderada pelos EUA, as YPG/SDF foram responsáveis por libertar cidades-chave do controle do ISIS, como Kobane, Manbij e, finalmente, Raqqa, a capital de fato do califado. A batalha de Kobane, em particular, tornou-se um símbolo da resistência curda, onde o ISIS sofreu uma de suas primeiras grandes derrotas em combate urbano, provando que o grupo não era invencível.

A parceria entre as forças curdas e a coalizão foi um modelo de sucesso militar. Enquanto a coalizão fornecia inteligência, ataques aéreos precisos e treinamento, as forças curdas forneciam a capacidade terrestre e o conhecimento do terreno. Essa sinergia permitiu uma campanha coordenada que gradualmente espremeu o ISIS de seu território. Os curdos estavam dispostos a lutar e morrer para proteger suas terras e comunidades, demonstrando uma motivação e coragem notáveis. Eles sofreram milhares de baixas na linha de frente, pagando um preço altíssimo na luta contra o terrorismo.

Apesar de seu papel heroico, as forças curdas enfrentaram desafios geopolíticos complexos. A Turquia, membro da OTAN, considera as YPG um grupo terrorista ligado ao PKK, o que complicou a coordenação e o apoio internacional. Essa tensão gerou conflitos adicionais e desvios de recursos, mesmo durante o auge da luta contra o ISIS. No entanto, o legado das forças curdas na derrota territorial do califado é inegável. Eles foram instrumentais na derrota militar do ISIS, provando serem aliados indispensáveis em um ambiente complexo. A sua contribuição na linha de frente foi fundamental para a eventual desintegração do califado territorial.

Como a derrota territorial do ISIS impactou sua estrutura e capacidade operacional?

A derrota territorial do ISIS, culminando com a perda de seus últimos redutos em Baghuz, na Síria, em março de 2019, representou um golpe devastador para sua estrutura e capacidade operacional, mas não significou o fim do grupo. A perda do califado físico privou o ISIS de sua principal reivindicação de legitimidade, que era a governança sobre um território. Sem uma base territorial, o grupo perdeu sua capacidade de coletar impostos em larga escala, controlar recursos como petróleo e operar uma burocracia estatal. Essa perda de receita e infraestrutura enfraqueceu drasticamente sua capacidade de pagar combatentes, adquirir armamentos e sustentar operações militares de grande escala. A redução de sua capacidade financeira foi um fator chave em sua diminuição.

Com a perda do território, o ISIS foi forçado a reverter para uma estrutura de insurgência mais tradicional. Seus combatentes se dispersaram, muitos se escondendo em áreas rurais ou desertas, outros se infiltrando em populações urbanas, e alguns fugindo para outros países. A organização se tornou mais clandestina, operando em células menores e descentralizadas. A prioridade mudou da defesa territorial para ataques de guerrilha, emboscadas e atos de terrorismo contra forças de segurança e civis. A capacidade de mobilização em massa e de conduzir operações de larga escala diminuiu drasticamente, embora sua capacidade de realizar ataques pontuais e mortais permanecesse. A transição para uma rede clandestina foi uma adaptação necessária para a sobrevivência.

A derrota territorial também impactou a capacidade do ISIS de recrutar combatentes estrangeiros. A atração de um califado funcional e em expansão, com uma “terra para a jihad“, foi um poderoso ímã para voluntários de todo o mundo. Com a perda do território, essa narrativa utópica perdeu grande parte de seu apelo, e o fluxo de combatentes estrangeiros diminuiu drasticamente. No entanto, a ideologia do ISIS não desapareceu, e o grupo continua a inspirar e incitar ataques por “lobos solitários” ou por filiais em outras regiões do mundo. A diminuição do afluxo de novos recrutas foi um revés significativo para o grupo.

Embora militarmente derrotado em seu coração, o ISIS demonstrou uma resiliência notável. Ele mantém bolsões de atividade insurgente no Iraque e na Síria e continua a ser uma ameaça significativa através de suas filiais regionais (as wilayat) em lugares como a África Ocidental, o Sahel, o Afeganistão e o Sinai. A ideologia jihadista global que o ISIS representa não foi erradicada, e as condições subjacentes que permitiram seu surgimento – instabilidade política, sectarismo e governança fraca – ainda persistem em muitas áreas. A derrota territorial marcou o fim de uma fase de seu desenvolvimento, mas não o fim da organização, que continua a se adaptar e a representar uma ameaça latente e difusa, longe de suas fronteiras originais.

O que significa a “ideia de Estado Islâmico” para além do território físico?

A “ideia de Estado Islâmico” transcende o mero controle territorial, representando uma visão ideológica e uma aspiração global que continua a influenciar o jihadismo mesmo após a perda do califado físico. Para o ISIS e seus apoiadores, o califado não é apenas uma entidade política ou militar, mas um conceito teológico e escatológico, a promessa de uma era de glória e pureza para os muçulmanos sob a lei islâmica mais estrita. Essa ideia prega a restauração de um modelo de governo que, segundo eles, existia nos primeiros dias do Islã, e que busca a unificação de todos os muçulmanos sob uma única bandeira e um único líder (o califa). A perda do território foi um revés, mas a visão permanece como um farol para os radicais.

Essa “ideia de Estado Islâmico” é profundamente enraizada em uma interpretação particular do salafismo jihadista, que prega a necessidade da jihad violenta para alcançar a soberania de Deus na Terra e a eliminação de todos os que se opõem a essa visão. Ela se manifesta na exigência de lealdade (bay’ah) ao califa, considerado o líder legítimo de todos os muçulmanos. Para os seguidores do ISIS, viver e lutar sob o califado é um dever religioso, e mesmo que o califado não tenha mais uma capital física, a obrigação de lealdade ao líder e à ideologia permanece. A lealdade ao conceito abstrato é mais forte do que a lealdade a um mero pedaço de terra.

Para além do controle territorial, a ideia do Estado Islâmico significa uma contínua inspiração para o terrorismo global. Mesmo sem uma base fixa, o ISIS pode incitar ataques em qualquer lugar do mundo por meio de sua propaganda online e de suas redes clandestinas. A narrativa de um “califado” que, embora oculto, ainda existe e busca expansão, continua a atrair indivíduos radicalizados. Essa capacidade de inspiração e descentralização é uma das maiores ameaças pós-territorial. O ISIS não precisa de um exército convencional para ser perigoso; sua ideologia e a capacidade de motivar “lobos solitários” ou células pequenas são igualmente potentes. A resiliência da narrativa jihadista é um desafio persistente para a segurança global.

A “ideia de Estado Islâmico” também se manifesta na criação de “províncias” (wilayat) do ISIS em diferentes partes do mundo, como na África Ocidental, Sinai, Afeganistão e Filipinas. Embora essas filiais operem com graus variados de autonomia, todas elas juram lealdade ao califa e compartilham a visão do ISIS de estabelecer o domínio da Sharia e expandir o califado globalmente. Essas “províncias” representam a materialização da ideia em diferentes contextos locais, adaptando as táticas do ISIS à realidade de cada região. A globalização do conceito de califado, com ramificações em diversos continentes, demonstra que o ISIS, como ideologia, sobrevive e se adapta, mesmo sem o brilho de uma capital formal. A luta contra o ISIS, portanto, é tanto militar quanto ideológica, exigindo uma abordagem multifacetada para conter sua influência duradoura.

Quais os desafios persistentes na contenção da ideologia do ISIS?

A contenção da ideologia do ISIS apresenta desafios persistentes e complexos, mesmo após a derrota territorial do grupo. Um dos principais é a natureza adaptativa e viral da ideologia. O ISIS não é apenas um grupo terrorista; é um movimento com uma narrativa poderosa que apela para indivíduos desiludidos, marginalizados ou em busca de propósito. A ideologia se alimenta de queixas legítimas, como a corrupção governamental, a marginalização de minorias e a percepção de injustiça global, distorcendo-as para justificar a violência extremista. Essa capacidade de se enraizar em diversos contextos sociais e políticos torna sua erradicação extremamente difícil, pois não se trata apenas de combater um exército, mas de desmantelar uma crença.

Outro desafio significativo é a proliferação da ideologia online. Apesar dos esforços de plataformas de mídia social para remover conteúdo extremista, o ISIS e seus apoiadores continuam a encontrar maneiras de se comunicar, recrutar e radicalizar indivíduos através de plataformas criptografadas, da dark web e de novas tecnologias. A velocidade e o alcance da internet permitem que a ideologia transponha fronteiras geográficas com facilidade, inspirando “lobos solitários” ou pequenas células em qualquer lugar do mundo. A perenidade do conteúdo digital e a capacidade de alcançar um público global de forma anônima representam um obstáculo constante para as autoridades de segurança e para os esforços de contra-narrativa.

As condições que permitiram o surgimento do ISIS – como a instabilidade política, a governança fraca, a corrupção e as tensões sectárias e étnicas – ainda persistem em muitas regiões do Oriente Médio e além. Em países como Iraque, Síria, Afeganistão e em partes da África, a ausência de um governo central eficaz, o desemprego, a falta de oportunidades e a marginalização continuam a criar um terreno fértil para a radicalização. O ISIS explora esses vácuos de poder e o descontentamento popular para ressurgir e encontrar novos recrutas, prometendo uma alternativa à ordem existente, por mais brutal que seja. A fragilidade dos estados e a prevalência de conflitos não resolvidos alimentam a capacidade do ISIS de se regenerar.

Finalmente, o desafio de desradicalizar e reintegrar ex-combatentes e simpatizantes do ISIS é imenso. Muitos indivíduos que se juntaram ao grupo ou que foram radicalizados online podem retornar a suas comunidades de origem, representando um risco de segurança contínuo e um desafio social. Programas de desradicalização são complexos, caros e nem sempre bem-sucedidos, exigindo um entendimento profundo das motivações individuais e um apoio multifacetado. A questão dos prisioneiros, incluindo milhares de combatentes do ISIS e suas famílias detidos em acampamentos superlotados na Síria, representa uma ameaça de longo prazo se não for abordada adequadamente, pois podem se tornar uma nova geração de jihadistas. A complexidade da desradicalização e da reintegração exige uma abordagem humanitária e de segurança de longo prazo.

Como o legado do ISIS continua a influenciar o terrorismo global?

O legado do ISIS continua a influenciar o terrorismo global de maneiras profundas e multifacetadas, mesmo após a perda de seu califado territorial. A principal influência é a descentralização e a globalização do jihadismo. O ISIS demonstrou que não é necessário um santuário físico para instigar e organizar ataques terroristas. Sua estratégia de inspirar “lobos solitários” e de promover ataques por células afiliadas em qualquer lugar do mundo, utilizando propaganda online, tornou o terrorismo uma ameaça mais difusa e imprevisível. Essa capacidade de inspirar e incitar é o novo modelo de terrorismo, em contraste com a Al-Qaeda, que priorizava ataques grandes e centralmente planejados. O modelo “caleidoscópico” do terror foi aperfeiçoado pelo ISIS.

Outro legado é a profissionalização da propaganda terrorista. O ISIS elevou o padrão da mídia jihadista, utilizando técnicas de produção de vídeo e design gráfico de alta qualidade, que cativaram um público global e atraíram milhares de recrutas. Esse modelo de comunicação visualmente atraente e emocionalmente carregada foi adotado por outros grupos terroristas e extremistas de diferentes matizes. A compreensão da importância das redes sociais e da guerra de informação na era digital é uma lição que o ISIS ensinou ao mundo terrorista. A sofisticação da comunicação se tornou um pré-requisito para o impacto global de grupos terroristas.

O ISIS também deixou um legado de extrema brutalidade e sectarismo que continua a ser uma marca de grupos jihadistas. Embora a Al-Qaeda também fosse brutal, o ISIS levou a violência a um novo patamar, com execuções espetaculares, genocídios e escravidão. Essa normalização da crueldade inspirou outros grupos a adotarem táticas semelhantes, aumentando o sofrimento das populações civis em áreas de conflito. O sectarismo do ISIS, que atacava indiscriminadamente muçulmanos xiitas, continua a alimentar tensões e conflitos internos no mundo islâmico, exacerbando as divisões e a violência em diferentes regiões. A radicalização do conceito de “inimigo” para incluir amplos grupos muçulmanos é um legado pernicioso.

Finalmente, o legado do ISIS reside na formação de redes globais de “províncias” (wilayat) que juraram lealdade ao califado e continuam a operar sob sua bandeira, mesmo após a morte de seus líderes centrais. Grupos na África (Sahel, Nigéria), Afeganistão, Moçambique e Filipinas, entre outros, continuam a realizar ataques em nome do ISIS, adaptando sua ideologia e táticas aos contextos locais. Essas filiais regionais representam a continuação da ameaça, mantendo a ideologia do califado viva e operacional em diferentes partes do mundo. A resiliência das franquias globais garante que a influência do ISIS perdure, adaptando-se e evoluindo, apresentando um desafio contínuo para a segurança internacional e para a estabilidade regional. A luta contra o terrorismo global terá de lidar com este modelo descentralizado e ideologicamente resiliente por muitos anos.

Quais as lições aprendidas com o surgimento e a queda territorial do ISIS?

O surgimento e a queda territorial do ISIS ofereceram lições cruciais para a comunidade internacional, embora muitas delas já tivessem sido aprendidas em conflitos anteriores, mas foram negligenciadas. A primeira e mais fundamental lição é que o colapso do Estado e o vácuo de poder são as condições ideais para o florescimento de grupos extremistas. A desestabilização completa do Iraque após a invasão de 2003 e a implosão da Síria em uma guerra civil demonstraram que a ausência de governança eficaz e a fragmentação do poder estatal criam o terreno fértil para a radicalização e o extremismo. Uma intervenção militar sem um plano de estabilização pós-conflito é uma receita para o desastre, como ficou dolorosamente claro.

Uma segunda lição é a importância de combater a ideologia, não apenas as manifestações militares. O ISIS provou que sua força não residia apenas em seu arsenal ou em seu território, mas em sua narrativa poderosa e capacidade de atrair seguidores. A luta contra o extremismo violento exige uma abordagem multifacetada que inclua a desradicalização, a contra-narrativa online, a promoção da educação e o desenvolvimento socioeconômico. A derrota militar do ISIS não significou a erradicação de sua ideologia, que continua a inspirar. A necessidade de uma estratégia ideológica robusta é premente para o futuro.

A terceira lição é a necessidade de uma resposta internacional coordenada, mas com uma compreensão das nuances locais. A formação da Coalizão Global para Combater o ISIS demonstrou que a cooperação internacional pode ser eficaz na derrota de um inimigo comum. No entanto, as tensões internas entre os membros da coalizão, as complexidades geopolíticas da região e a falta de uma estratégia política unificada para a Síria e o Iraque, após a derrota militar do ISIS, evidenciaram os limites de uma abordagem puramente militar. A coordenação política e estratégica entre atores regionais e internacionais continua a ser um desafio para a estabilidade a longo prazo. A importância da inteligência compartilhada e da cooperação tática foi um ponto positivo.

Por fim, a resiliência do ISIS e sua capacidade de se adaptar, de um “califado” territorial a uma rede clandestina e de filiais globais, sublinha que a luta contra o terrorismo é de longo prazo. A derrota do califado não erradicou a ameaça, mas a transformou. Governos e comunidades devem permanecer vigilantes, investindo em medidas de segurança, fortalecendo a governança, promovendo a inclusão social e combatendo as causas-raízes do extremismo. A ameaça do terrorismo jihadista continua a evoluir, exigindo uma adaptabilidade constante e um compromisso sustentado na prevenção e resposta. O ciclo de violência e radicalização persistirá enquanto as condições subjacentes não forem abordadas de forma eficaz.

Bibliografia

• Gerges, Fawaz A. ISIS: A History. Princeton University Press, 2016.
• Weiss, Michael, and Hassan, Hassan. ISIS: Inside the Army of Terror. Regan Arts, 2015.
• Wright, Lawrence. The Looming Tower: Al-Qaeda and the Road to 9/11. Vintage Books, 2007.
• Cockburn, Patrick. The Rise of Islamic State: ISIS and the New Sunni Revolution. Verso Books, 2015.
• Stern, Jessica, and Berger, J.M. ISIS: The State of Terror. HarperCollins, 2015.
• McCants, William. The ISIS Apocalypse: The History, Strategy, and Doomsday Vision of the Islamic State. St. Martin’s Press, 2015.
• Burke, Jason. The New Threat: The Past, Present, and Future of Islamic Extremism. W. W. Norton & Company, 2016.
• Jones, Seth G. A Persistent Threat: The Evolution of al Qaeda and Other Salafi-Jihadi Groups. RAND Corporation, 2014.
• United Nations. Report of the Independent International Commission of Inquiry on the Syrian Arab Republic. Various editions, focusing on ISIS atrocities.
• Amnesty International. Reports on human rights abuses by ISIS. Various editions.