Vida e Morte de Joana d’Arc: o que foi, causas e impactos

Quem foi Joana d’Arc e qual o contexto histórico de sua ascensão?

A figura de Joana d’Arc emerge de um período de profunda convulsão na Europa, a Guerra dos Cem Anos, um conflito dinástico prolongado entre as coroas da França e da Inglaterra que se estendeu por mais de um século. Nascida por volta de 1412, em Domrémy, uma pequena aldeia no nordeste da França, Joana veio ao mundo em um tempo onde seu país estava desfacelado, com grande parte de seu território sob ocupação inglesa ou borgonhesa, e seu rei, o Delfim Carlos VII, despojado de seu direito divino ao trono, vivendo praticamente no exílio. A França enfrentava uma crise de identidade e soberança sem precedentes.

A situação era complexa e desesperadora para os franceses leais ao Delfim. O Tratado de Troyes, assinado em 1420, selava uma aliança humilhante, na qual o rei inglês Henrique V se casaria com a filha do rei francês Carlos VI, Catarina, e seu filho seria o futuro rei da França, efetivamente deserdando o Delfim Carlos VII. Isso significava que a coroa francesa passaria para as mãos inglesas, e a nação seria governada por uma potência estrangeira. A legitimidade da monarquia francesa estava em xeque, e o moral das tropas e do povo despencava.

Domrémy, a terra natal de Joana, situava-se numa região fronteiriça, constantemente exposta às incursões de tropas e à violência da guerra. Era um local onde a lealdade à coroa francesa ainda era forte, mas a vida cotidiana era marcada pela incerteza e pelo medo. Crescendo nesse ambiente, a jovem Joana, filha de camponeses relativamente abastados, foi imersa na fé católica e nos valores tradicionais, o que moldaria profundamente sua visão de mundo e suas futuras ações.

A profunda piedade de Joana, aliada à sua observação direta do sofrimento de seu povo, forjou nela uma convicção inabalável de que a França precisava de uma intervenção divina para ser salva. Ela vivenciou de perto os saques e a destruição provocados pelos exércitos em conflito, testemunhando a miséria generalizada que a guerra impunha aos camponeses e às comunidades rurais. A percepção da injustiça e da opressão estrangeira se arraigou em sua consciência desde cedo.

Enquanto a França se debatia, com seus exércitos desmoralizados e a nobreza dividida por rivalidades internas, a cidade de Orléans, estrategicamente vital, estava sob cerco inglês há meses. A queda de Orléans significaria o colapso final da resistência francesa e a consolidação do domínio inglês sobre o Vale do Loire, abrindo caminho para a captura do próprio Delfim e o fim da independência francesa. A situação parecia irreversível e a esperança era quase inexistente.

A desesperança pairava sobre o Delfim Carlos VII, que era retratado como fraco e indeciso, incapaz de unir as facções francesas ou de liderar uma reação militar eficaz. Seu poder era precário e sua autoridade questionada até mesmo dentro de sua própria corte, o que aumentava a sensação de vulnerabilidade francesa. A ausência de um líder forte e carismático que pudesse inspirar a nação era palpável em todos os níveis da sociedade.

Nesse cenário de desespero e desordem, a aparição de uma camponesa analfabeta, afirmando ter uma missão divina para libertar a França e coroar seu rei, parecia improvável e, para muitos, completamente absurda. A ideia de que uma jovem mulher, sem qualquer experiência militar ou política, pudesse alterar o curso de uma guerra tão gigantesca era, à primeira vista, completamente impensável para os padrões da época.

Como Joana d’Arc ouviu suas “vozes” e qual a sua importância inicial?

Aos treze anos de idade, Joana d’Arc começou a experimentar visões e a ouvir o que ela descrevia como “vozes celestiais”, fenômenos que se tornariam a pedra angular de sua missão. Essas vozes, que ela identificava como sendo de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia, não eram meros sussurros etéreos, mas sim instruções claras e específicas, com comandos divinos que a instigavam a agir em nome de Deus para salvar a França. Inicialmente, as vozes a instruíram a levar uma vida de piedade e virtude.

A natureza dessas comunicações divinas tem sido objeto de intenso debate histórico e teológico, mas para Joana, elas eram absolutamente reais e inquestionáveis. Ela descrevia os santos aparecendo com grande luz e clareza, e suas mensagens eram transmitidas com uma autoridade que ela não podia ignorar. A regularidade e a persistência das vozes, que se tornaram mais frequentes e detalhadas com o tempo, reforçaram sua convicção de que era uma escolhida.

Gradualmente, as instruções das vozes evoluíram de preceitos morais para uma missão de proporções épicas: libertar a cidade de Orléans do cerco inglês e levar o Delfim Carlos para ser coroado rei em Reims. Essa era uma tarefa monumental e aparentemente impossível para uma jovem camponesa. A magnitude da tarefa designada, que exigia que ela abandonasse sua vida pacata para intervir em assuntos de estado e guerra, revela a força de sua crença nas mensagens que recebia.

A importância inicial dessas vozes para Joana residia na legitimação de sua própria convicção interna. Elas forneciam a autoridade divina necessária para que ela, uma mulher do povo, pudesse desafiar as convenções sociais e militares da época. Sem essa percepção de um mandato celestial, é improvável que ela sequer ousasse tentar uma empreitada tão grandiosa, pois sua posição na sociedade a condenava ao anonimato e à insignificância.

As vozes também foram fundamentais para incutir nela uma imensa coragem e determinação. Mesmo diante do ceticismo, da zombaria e dos perigos iminentes, Joana jamais duvidou da autenticidade de suas experiências ou da justeza de sua missão. A crença de que estava cumprindo a vontade de Deus a capacitou a perseverar contra todas as adversidades e a manter sua fé inabalável, mesmo nos momentos mais desafiadores de sua jornada.

A fé que Joana demonstrava em suas vozes era tão profunda que ela conseguiu transmiti-la, ainda que gradualmente, a algumas pessoas ao seu redor. Parentes e vizinhos que inicialmente duvidaram de sua sanidade ou da veracidade de suas afirmações começaram a perceber a seriedade de seu propósito. Essa convicção pessoal seria crucial para convencer os primeiros aliados e para dar os primeiros passos em sua jornada extraordinária.

As instruções divinas não se limitavam a grandes objetivos estratégicos; elas também incluíam detalhes sobre como ela deveria se apresentar e o que deveria fazer. Por exemplo, a instrução para usar roupas masculinas era uma das mais distintivas e controversas, mas para Joana, era uma diretriz fundamental que ela seguia com estrita obediência, pois acreditava que era essencial para a execução de sua missão sagrada.

Quais foram os primeiros passos de Joana d’Arc para encontrar o Delfim Carlos VII?

Os primeiros passos de Joana d’Arc para cumprir sua missão divina foram marcados pela necessidade de superar o ceticismo inicial e encontrar um caminho até o Delfim Carlos VII, que residia em Chinon. Sua jornada começou na pequena cidade de Vaucouleurs, onde ela buscou o apoio de Robert de Baudricourt, o capitão da guarnição local. Inicialmente, Baudricourt zombou de suas afirmações, sugerindo que ela fosse “levada para casa e recebesse uns bons tapas” de seu pai, mostrando a completa incredulidade com a qual suas palavras eram recebidas.

Joana, no entanto, não se deixou desanimar pela indiferença ou pelo escárnio. Sua fé inabalável e a persistência em suas alegações, baseadas nas “vozes” divinas, gradualmente começaram a impactar aqueles ao seu redor. Ela retornou várias vezes a Baudricourt, reiterando a urgência de sua missão e a necessidade de chegar ao Delfim, demonstrando uma determinação incomum para uma jovem de sua idade e condição social, o que lentamente minava a resistência do capitão.

Um evento crucial para sua aceitação foi a suposta predição que ela fez sobre a derrota francesa na Batalha das Arénguas (Journée des Harengs), ocorrida em 12 de fevereiro de 1429, próximo a Orléans. Antes que as notícias oficiais chegassem a Vaucouleurs, Joana teria anunciado a derrota francesa para uma caravana que partia para Chinon, o que, ao ser confirmado posteriormente, aumentou a credibilidade de suas visões. Este episódio específico, embora debatido por historiadores, foi crucial para convencer alguns dos mais céticos a darem-lhe uma chance.

A persistência de Joana, somada ao desespero da situação francesa e à aparente confirmação de sua predição, finalmente persuadiu Baudricourt a reconsiderar. Ele cedeu e providenciou uma pequena escolta e roupas masculinas para que ela pudesse viajar em segurança pela Borgonha, território inimigo, até Chinon. A decisão de Baudricourt, embora relutante, foi um ato de desespero e curiosidade, uma aposta em algo que parecia a última esperança num cenário de completa desgraça para a França.

A viagem de Joana de Vaucouleurs a Chinon, em fevereiro de 1429, foi uma empreitada perigosa de onze dias, através de um território hostil infestado por bandidos e tropas inimigas. Ela viajou disfarçada de homem para maior segurança, acompanhada por seu escudeiro Jean de Metz e o cavaleiro Bertrand de Poulengey, que se tornaram seus primeiros grandes defensores e testemunhas de sua fé e coragem, e que depois a acompanhariam em muitas de suas campanhas.

Ao chegar a Chinon, Joana teve que enfrentar mais uma rodada de ceticismo e testes. A corte do Delfim era um ninho de intrigas e desconfiança, e muitos viam nela uma louca, uma bruxa ou uma impostora. Ela teve que esperar dias para ser concedida uma audiência, demonstrando a resistência inicial que encontrava mesmo entre aqueles que supostamente deveria ajudar, e essa espera aumentava a pressão sobre sua missão.

Apesar da hesitação inicial da corte, a fama de Joana, ainda que incipiente, já começava a precedê-la. Notícias de uma jovem camponesa que falava com Deus e que vinha para salvar a França começaram a se espalhar, gerando uma mistura de esperança e curiosidade. Essa aura de mistério e promessa, embora não garantisse aceitação imediata, abria as portas para o próximo e crucial passo em sua jornada.

Como Joana d’Arc conseguiu a confiança do Delfim Carlos VII em Chinon?

A chegada de Joana d’Arc a Chinon em fevereiro de 1429 marcou um momento crucial, onde ela precisaria superar o ceticismo da corte e, mais importante, do próprio Delfim Carlos VII. Para testá-la, Carlos VII se disfarçou entre seus cortesãos na sala de audiência. Joana, no entanto, dirigiu-se diretamente a ele, identificando-o sem qualquer hesitação ou indicação prévia, um feito que muitos consideraram um milagre ou um sinal divino, dada a sua completa falta de conhecimento prévio da aparência do Delfim, e essa ação inicial deixou a corte em estado de choque e admiração.

Esse reconhecimento imediato, que desafiava a lógica e a expectativa, foi o primeiro grande passo para conquistar a confiança. Joana então teria sussurrado ao Delfim uma revelação secreta que somente ele poderia conhecer, um segredo que supostamente confirmava sua legitimidade como herdeiro do trono francês e afastava suas dúvidas sobre sua própria origem. O conteúdo exato dessa revelação nunca foi divulgado, mas o fato de Carlos VII ter saído da conversa visivelmente afetado e mais confiante em si mesmo e nela, indicava o impacto profundo que as palavras de Joana tiveram.

Apesar desse momento de revelação, a corte ainda estava dividida. Para garantir a autenticidade das alegações de Joana, ela foi submetida a um rigoroso exame teológico em Poitiers, conduzido por um painel de teólogos, bispos e eruditos. Durante várias semanas, ela foi interrogada sobre sua fé, suas visões e sua moralidade. Sua respostas, que eram diretas, lógicas e profundamente arraigadas na doutrina católica, impressionaram os inquisidores, mostrando sua genuína piedade e inteligência incomum.

Um dos pontos centrais do interrogatório foi a questão de suas vozes e a autenticidade de sua missão divina. Joana manteve sua postura firme, insistindo que suas vozes vinham de Deus e que sua missão era salvar a França. Quando questionada sobre a necessidade de um sinal para provar sua origem divina, ela respondeu com audácia e fé, afirmando que o sinal seria a libertação de Orléans, uma cidade então sob cerco inglês e em grave perigo de cair, algo que ela prometia realizar como prova irrefutável de sua conexão celestial.

Os teólogos também se detiveram na questão das vestes masculinas que Joana usava. Ela explicou que era uma ordem divina para sua proteção em meio aos exércitos e que era essencial para a execução de sua missão. Embora controversa, a justificação dela para essa prática, baseada na necessidade funcional e na instrução celestial, foi aceita temporariamente, pois sua prioridade era salvar a França, e as convenções de gênero pareciam secundárias diante da urgência da situação.

Apesar de não ter revelado um milagre espetacular em Poitiers, a convicção de Joana, sua profunda fé, sua inteligência nos interrogatórios e a ausência de qualquer traço de heresia ou feitiçaria, foram suficientes para que os teólogos declarassem que “nada de mal foi encontrado nela, apenas bondade e virtude.” Essa aprovação eclesiástica foi crucial, pois forneceu a legitimidade necessária para que o Delfim e sua corte pudessem apoiá-la sem medo de que ela fosse uma charlatã ou uma agente do diabo.

Com o endosso dos teólogos e a sua própria intuição, Carlos VII finalmente decidiu dar a Joana d’Arc os recursos e a autoridade para liderar um exército de socorro a Orléans. Esta decisão marcou uma mudança dramática no curso da guerra, e a confiança que ele depositou nela, por mais improvável que parecesse, abriria um novo capítulo na história da França, infundindo uma nova esperança em um reino que estava à be beira do colapso.

Qual foi a estratégia militar de Joana d’Arc no Cerco de Orléans?

A chegada de Joana d’Arc ao cerco de Orléans, em abril de 1429, trouxe consigo não uma estratégia militar convencional no sentido tático detalhado, mas uma revolução no moral das tropas francesas e uma abordagem ousada que desafiava as táticas de cerco da época. A cidade estava sob cerco há meses, e os defensores franceses estavam desmoralizados e à beira da rendição. A presença de Joana, com sua bandeira e sua aura de divina intervenção, transformou o espírito dos soldados e da população.

A principal estratégia de Joana foi o ataque direto e a iniciativa ofensiva, em contraste com a cautela e a passividade que haviam caracterizado as operações francesas. Ela insistiu que a melhor defesa era o ataque, e que os franceses deveriam tomar a ofensiva contra os ingleses, em vez de esperar serem atacados dentro das muralhas. Esta abordagem agressiva infundiu uma nova energia nas tropas, que haviam se acostumado a uma guerra de desgaste e defensiva.

Ela acreditava firmemente que a vitória era a vontade de Deus e que a hesitação só atrasava o inevitável triunfo. Sob sua influência, os franceses não apenas realizaram ataques contra as fortificações inglesas que cercavam Orléans, mas o fizeram com uma ferocidade e coragem renovadas. Ela liderava as tropas na vanguarda, ostentando sua bandeira e inspirando os soldados com sua presença carismática e sua aparente invulnerabilidade no campo de batalha.

Um dos primeiros grandes sucessos foi a retomada da fortificação de Saint Loup, em 4 de maio. Este foi um ataque relâmpago, liderado por Joana, que pegou os ingleses de surpresa. A vitória em Saint Loup não apenas removeu uma posição inimiga chave, mas também serviu como uma poderosa injeção de confiança para os franceses, mostrando que a vitória era possível, contrariando a resignação que havia se instalado.

O ponto culminante do cerco foi a tomada de Les Tourelles, uma fortaleza estratégica que controlava a ponte sobre o rio Loire e impedia o suprimento e a comunicação da cidade. Em 7 de maio, Joana liderou o assalto final a Les Tourelles, apesar de ter sido ferida por uma flecha no ombro. Sua recusa em abandonar o campo e sua rápida recuperação, que muitos interpretaram como um milagre, revitalizou as tropas e as impulsionou para a vitória decisiva.

Sua participação no campo de batalha era mais simbólica e inspiradora do que tática no sentido militar moderno, mas esse papel era precisamente o que faltava aos franceses. Ela não era uma general treinada em estratégias complexas de manobras de flanco ou cerco prolongado, mas sim uma líder carismática que infundia uma fé e coragem sobrenaturais. Sua presença era uma catalisadora que transformava soldados desmoralizados em uma força combatente inspirada.

A libertação de Orléans em 8 de maio de 1429, apenas alguns dias após a chegada de Joana, foi um evento monumental que não só salvou a cidade, mas também inverteu completamente o curso da Guerra dos Cem Anos. Marcou o fim do cerco mais importante da guerra e deu início a uma série de vitórias francesas, provando o poder da crença e da liderança inspirada que Joana d’Arc representava, redefinindo o que era considerado possível para o exército francês.

Que papel Joana d’Arc desempenhou na campanha do Loire e na libertação de outras cidades?

Após a espetacular libertação de Orléans, a campanha militar de Joana d’Arc continuou com uma série de vitórias ao longo do Vale do Loire, consolidando a vantagem francesa e abrindo o caminho para a coroação do Delfim. Seu papel nessa fase foi crucial, pois ela continuava a ser a força motriz e inspiradora por trás das operações, que visavam a remover as últimas guarnições inglesas na região. A confiança renovada do exército francês, impulsionada pelo sucesso em Orléans, era um fator decisivo.

A primeira ação após Orléans foi a retomada de Jargeau, uma cidade sob controle inglês. Em 11 de junho de 1429, Joana liderou o assalto, que foi vigoroso e decisivo. Ela estava na linha de frente, mais uma vez, e foi atingida por uma pedra na cabeça, mas, sem se abalar, continuou a comandar as tropas, impelindo-as para a vitória. Essa demonstração de resiliência e liderança pessoal elevou ainda mais sua reputação de invencibilidade entre os soldados franceses.

Em seguida, o exército francês, sob a influência e inspiração de Joana, avançou para Meung-sur-Loire e Beaugency. Nessas cidades, a resistência inglesa foi superada com notável rapidez. Em Meung, os franceses tomaram a ponte estratégica, e em Beaugency, após um breve cerco, a guarnição inglesa se rendeu, facilitando o avanço. As vitórias sucessivas demonstravam uma nova capacidade ofensiva francesa, que antes parecia impensável, e a celeridade das operações era notável.

O ápice da campanha do Loire foi a Batalha de Patay, ocorrida em 18 de junho de 1429. Embora a participação direta de Joana na tática da batalha seja debatida, sua presença no exército e sua influência na moral foram inegáveis. Os franceses, liderados por comandantes como La Hire e Arthur de Richemont, lançaram um ataque surpresa que dizimou a força inglesa liderada por Sir John Fastolf e John Talbot. Foi uma vitória esmagadora, comparável ao desastre de Azincourt, mas desta vez a favor dos franceses.

A Batalha de Patay foi a primeira grande vitória em campo aberto do exército francês sobre os ingleses em décadas, e ela quebrou o mito da invencibilidade da infantaria arqueira inglesa. Essa vitória foi crucial, pois eliminou grande parte da resistência inglesa organizada no Vale do Loire, abrindo o caminho para a marcha sobre Reims, onde o Delfim Carlos deveria ser coroado rei da França, um objetivo que as vozes de Joana haviam insistentemente prometido.

Joana d’Arc, com sua presença e suas previsões de sucesso, conseguiu manter o impulso e a coesão de um exército que antes era hesitante e dividido. Sua capacidade de inspirar confiança e coragem nos comandantes e nos soldados foi um fator psicológico de guerra que poucos outros líderes poderiam igualar. Ela transformou um exército desmoralizado em uma força vitoriosa e determinada, pronta para a próxima fase de sua missão.

As campanhas do Loire, culminando na vitória de Patay, foram um testemunho da eficácia da estratégia de Joana de ataque direto e fé inabalável. Elas pavimentaram o caminho para a coroação de Carlos VII e mudaram fundamentalmente a dinâmica da Guerra dos Cem Anos, movendo o conflito de uma posição de defensiva desesperada para uma ofensiva vitoriosa que restabeleceria a soberania francesa.

Qual foi a importância da coroação de Carlos VII em Reims para a causa francesa?

A coroação do Delfim Carlos VII em Reims, em 17 de julho de 1429, foi um evento de profunda importância simbólica e política para a causa francesa, um dos objetivos primordiais da missão de Joana d’Arc. Reims, a cidade onde os reis franceses eram tradicionalmente coroados e ungidos desde Clóvis, estava em território hostil, cercada por terras controladas pelos ingleses e seus aliados borgonheses. A marcha até lá, com Joana d’Arc liderando as tropas, foi uma demonstração audaciosa de poder e fé.

A coroação em Reims, em vez de em uma cidade mais segura, foi um ato deliberado e estratégico, instigado por Joana, para legitimar a monarquia de Carlos VII. Pelo Tratado de Troyes, Carlos havia sido deserdado e seu direito ao trono era contestado por muitos, incluindo os próprios súditos que se viam forçados a aceitar a dominação inglesa. A cerimônia em Reims, com toda a sua pompa e tradição, conferia a Carlos uma autoridade divina e inquestionável, fundamental para unir uma França dividida.

A presença de Joana d’Arc na coroação, empunhando sua bandeira, era um testemunho visual de que a vitória e a restauração da França eram um mandato celestial. A multidão, que acorreu para testemunhar o evento, viu nela a personificação da intervenção divina que havia prometido a salvação. Esse ato público de reconhecimento do rei por uma figura percebida como santa, elevou o moral da nação a patamares sem precedentes, transformando o desespero em esperança.

A coroação teve um impacto imediato na percepção internacional da Guerra dos Cem Anos. Ela mostrou que o Delfim não era apenas um pretendente fugitivo, mas um rei ungido, com apoio divino e popular. Isso enfraqueceu a legitimidade das reivindicações inglesas ao trono francês e minou o Tratado de Troyes. Muitos nobres e cidades, que antes estavam neutros ou inclinados aos ingleses, começaram a reavaliar suas alianças, observando a nova onda de otimismo e sucesso francês.

Para Carlos VII, a coroação em Reims foi um momento de grande triunfo pessoal. Ele, que havia sido zombado como o “Rei de Bourges”, um monarca sem reino, agora se via legitimado diante de Deus e dos homens. Essa validação o encorajou a assumir um papel mais ativo na governança e na liderança da guerra, embora sua cautela inata permanecesse um traço de sua personalidade, e isso influenciaria decisões futuras.

A marcha e a coroação em Reims foram, em essência, uma campanha de propaganda e de reafirmação do poder francês. A facilidade com que o exército francês, liderado por Joana, atravessou territórios inimigos sem grandes confrontos, forçando cidades a abrir suas portas, mostrou a eficácia de sua reputação. A força do símbolo e da fé era mais poderosa do que a força das armas em muitos casos durante essa jornada.

Essa consagração real solidificou a posição de Joana como a heroína da França e a enviada de Deus. Seu sucesso em cumprir um objetivo que muitos consideravam impossível não apenas validou suas “vozes” aos olhos do público, mas também cimentou sua imagem como uma figura messiânica, destinada a redimir seu povo e sua terra, um fardo que ela carregava com um senso inabalável de propósito.

Por que Joana d’Arc não conseguiu libertar Paris e qual foi o impacto disso?

Após a coroação em Reims, a campanha de Joana d’Arc enfrentou seu primeiro grande revés na tentativa de libertar Paris, a capital francesa, então sob domínio inglês e borgonhês. A falha em tomar a cidade foi multifacetada, envolvendo tanto a resistência inimiga quanto a cautela do próprio Carlos VII e de seus conselheiros. Enquanto Joana desejava atacar Paris imediatamente para capitalizar o ímpeto, o rei e sua corte preferiam uma abordagem mais diplomática e gradual.

O Delfim Carlos VII, apesar de sua coroação, era por natureza um monarca hesitante e inclinado à negociação. Seus conselheiros, muitos dos quais viam Joana com uma mistura de admiração e desconfiança, preferiam tentar um acordo de paz com o Duque da Borgonha, Filipe, do que arriscar um ataque direto a Paris. Essa estratégia de atraso e negociação minou o momentum militar que Joana havia construído, permitindo que os ingleses e borgonheses reforçassem suas defesas na capital, e o tempo era crucial.

O ataque a Paris ocorreu em setembro de 1429, meses após a coroação, dando tempo suficiente para os defensores prepararem-se. Joana, com um exército menor do que o necessário, lançou um assalto direto às portas da cidade, especificamente à Porte Saint-Honoré, em 8 de setembro. Este ataque, embora corajoso, foi mal coordenado e não teve o apoio total da artilharia real, que só chegou tarde ao combate, demonstrando a falta de unidade estratégica.

Durante o assalto, Joana foi ferida por uma flecha na coxa, um evento que, ao contrário de Orléans, não resultou em um milagre aparente ou na recuperação instantânea. O ferimento, embora não fatal, a forçou a ser retirada do campo de batalha, e essa ausência de sua presença inspiradora desmoralizou as tropas que já estavam lutando contra uma resistência feroz. A vulnerabilidade de Joana, pela primeira vez visível, abalou a confiança de alguns.

Carlos VII, percebendo a dificuldade do ataque e a resistência feroz, ordenou a retirada do exército. Essa decisão, tomada contra a vontade de Joana, marcou o fim da fase de vitórias ininterruptas e o início de uma série de dificuldades para a donzela. A retirada de Paris foi um golpe psicológico significativo, quebrando a aura de invencibilidade que a cercava e dando aos inimigos uma tão esperada vitória moral contra ela.

O impacto da falha em libertar Paris foi profundo. Ela permitiu que os ingleses e borgonheses mantivessem um controle vital sobre a capital, e a guerra se arrastaria por muitos mais anos. Além disso, a derrota corroeu a confiança que alguns membros da corte real tinham em Joana, levando a uma diminuição gradual de sua influência sobre as decisões militares e políticas de Carlos VII, que passou a ouvir mais seus conselheiros tradicionais.

Apesar do revés, Joana não perdeu sua fé ou sua determinação. Ela continuou a exortar o rei a agir, a retomar a ofensiva e a libertar o resto da França. No entanto, sua voz não tinha mais o mesmo peso irrestrito que tivera antes, e ela se viu cada vez mais marginalizada nas decisões estratégicas, o que a deixaria em uma posição vulnerável para eventos futuros.

Quais foram os eventos que levaram à captura de Joana d’Arc em Compiègne?

Após o fracasso em Paris e a crescente relutância de Carlos VII em seguir suas propostas militares agressivas, Joana d’Arc experimentou um período de diminuição de sua influência na corte. Ela passou o inverno de 1429-1430 em relativo ostracismo, ansiosa para retomar a ofensiva, mas limitada pelas políticas cautelosas do rei e seus conselheiros, que preferiam a diplomacia e a consolidação das vitórias já conquistadas, em vez de arriscar novas ofensivas, o que gerava frustração em Joana.

Em maio de 1430, com o cerco borgonhês à cidade de Compiègne, Joana d’Arc viu uma oportunidade de retomar seu papel ativo na guerra. Compiègne era uma posição estratégica vital e sua queda seria um duro golpe para a causa francesa. Agindo por sua própria iniciativa e movida por suas vozes, que a alertavam sobre sua iminente captura, ela partiu com um pequeno grupo de soldados para defender a cidade, demonstrando sua lealdade inabalável ao reino e ao povo.

A cidade de Compiègne estava sob cerco por forças borgonhesas, lideradas por João de Luxemburgo. Joana, com sua energia característica, lançou um audacioso ataque em 23 de maio de 1430 contra o acampamento inimigo em Margny, nos arredores de Compiègne. Seu objetivo era aliviar a pressão sobre a cidade e desorganizar as linhas de cerco, uma tática que já havia se provado eficaz em Orléans, mas o cenário era diferente.

Durante a escaramuça, os borgonheses foram rapidamente reforçados e o pequeno contingente francês foi sobrepujado em número. O comandante da guarnição de Compiègne, Guillaume de Flavy, vendo o perigo iminente e a impossibilidade de manter a defesa da ponte, ordenou que a ponte levadiça fosse levantada, fechando as portas da cidade. Essa ação, embora possivelmente necessária para proteger Compiègne, selou o destino de Joana d’Arc.

Deixada fora das muralhas da cidade com seus poucos homens, Joana foi cercada pelos borgonheses. Em meio ao caos da retirada e da perseguição, ela foi derrubada de seu cavalo. A captura ocorreu próximo ao rio Oise, onde ela tentava escapar do cerco, e foi um momento de grande consternação para os franceses e de júbilo para os inimigos, que a viam como a personificação da resistência que os atormentava.

Foi um arqueiro borgonhês que a puxou do cavalo e a entregou a Lyonnel de Wandomme, um capitão sob o comando de João de Luxemburgo. A captura de Joana d’Arc não foi um ato de grande batalha ou estratégia, mas o resultado de um ataque desesperado e uma retirada mal sucedida, um contraste notável com suas vitórias anteriores, marcando o fim de sua carreira militar ativa e o início de sua longa provação.

A notícia de sua captura se espalhou rapidamente pela França e pela Europa. Para os franceses, foi um choque e uma desmoralização, enquanto para os ingleses, foi uma vitória propagandística e a oportunidade de silenciar a voz que havia inspirado tantas derrotas para eles. A importância de sua captura era tamanha que logo se iniciaria uma série de negociações para sua entrega aos inimigos mais interessados em sua condenação, preparando o palco para o julgamento infame.

Quem foram os principais atores por trás da captura e venda de Joana d’Arc?

A captura de Joana d’Arc em Compiègne e sua subsequente entrega aos ingleses envolveu uma série de atores, cada um com seus próprios interesses e motivações. O principal captor foi João de Luxemburgo, um nobre borgonhês, membro da Casa de Luxemburgo e vassalo do Duque Filipe, o Bom da Borgonha. Joana foi tecnicamente capturada por um de seus homens, e ela se tornou sua prisioneira, inicialmente detida em seu castelo em Beaulieu e depois em Beaurevoir, o que lhe dava um valioso trunfo.

Os borgonheses eram aliados dos ingleses na Guerra dos Cem Anos e eram, em grande parte, responsáveis pela fragmentação do reino francês. O Duque Filipe, o Bom, líder da Borgonha, via Joana d’Arc como uma ameaça direta à sua influência e aos seus acordos com os ingleses. Ele se beneficiava do caos e da fraqueza da coroa francesa e, portanto, a captura de Joana era uma oportunidade para eliminar uma força unificadora e carismática que apoiava seu inimigo, Carlos VII, e esse interesse político era primordial.

Os ingleses, liderados por Henrique VI (ainda uma criança) e por seus regentes, em particular o Duque de Bedford, eram os maiores interessados em ter Joana d’Arc em suas mãos. Para eles, Joana não era apenas uma comandante militar eficaz, mas uma figura propagandística que havia desmoralizado suas tropas e inspirado os franceses. Eles a viam como uma feiticeira, uma herege, e acreditavam que sua legitimidade vinha do diabo, não de Deus, e era fundamental para eles descreditar essa narrativa.

O interesse inglês era duplo: militar e político-religioso. Do ponto de vista militar, removê-la do campo de batalha era uma vitória tática. Do ponto de vista político, eles precisavam provar que as vitórias de Joana não eram divinamente inspiradas, mas sim obras do mal. Condená-la por heresia seria uma forma de deslegitimar Carlos VII, que havia sido coroado por sua intervenção, e de restaurar a superioridade moral e espiritual inglesa, que havia sido severamente abalada.

A negociação para a venda de Joana d’Arc foi conduzida principalmente entre João de Luxemburgo e o governo inglês. Apesar de alguns apelos do rei Carlos VII e de outras partes francesas para o resgate de Joana, Carlos não conseguiu ou não quis pagar a alta soma de resgate exigida, que se estimava em 10.000 libras tournois, uma fortuna na época. Essa inação real, ou incapacidade, tem sido um ponto de controvérsia e tristeza para muitos defensores de Joana ao longo da história.

O principal intermediário e figura-chave que facilitou a transação e se tornou o algoz de Joana foi Pierre Cauchon, o Bispo de Beauvais. Cauchon era um partidário feroz dos ingleses e um inimigo declarado de Carlos VII e da causa francesa. Ele havia perdido sua diocese para os franceses e nutria um ódio pessoal por Joana, considerando-a uma herege e uma ameaça à ordem eclesiástica e política. Sua motivação era tanto política quanto religiosa, e ele via na condenação de Joana um meio de ascender na hierarquia eclesiástica.

Cauchon, agindo em nome da Coroa Inglesa, ofereceu uma soma considerável a João de Luxemburgo pela custódia de Joana. A transação foi finalizada em novembro de 1430, e Joana foi transferida para Rouen, a capital inglesa na Normandia, onde seria submetida ao seu infame julgamento, que se tornaria uma farsa jurídica e um exemplo sombrio de perseguição política sob o manto da justiça religiosa.

Como Joana d’Arc foi entregue aos ingleses e por que eles a queriam tanto?

A entrega de Joana d’Arc aos ingleses foi um processo meticuloso e deliberado, impulsionado pela necessidade inglesa de desacreditar a heroína francesa e, por extensão, o próprio Delfim Carlos VII. Após sua captura pelos borgonheses, ela permaneceu sob a custódia de João de Luxemburgo. Durante esse período, os ingleses, cientes do valor estratégico e propagandístico de Joana, iniciaram negociações intensas para adquirir sua custódia, vendo-a como uma arma poderosa a ser usada contra a moral francesa e a legitimidade de seu rei.

O principal arquiteto dessa transferência foi Pierre Cauchon, Bispo de Beauvais. Cauchon era um prelado francês que havia sido exilado de sua diocese por Carlos VII e que, por isso, era um leal partidário dos ingleses e do Duque da Borgonha. Ele nutria um profundo rancor contra Joana e a via como uma agente do diabo, cuja influência desestabilizava a ordem política e religiosa que ele apoiava. Seu objetivo era julgá-la por heresia e magia, para anular as suas vitórias e a coroação de Carlos VII.

Cauchon, com o apoio financeiro e político do governo inglês, ofereceu uma soma substancial a João de Luxemburgo pela custódia de Joana. A quantia de 10.000 libras tournois foi combinada, um preço extremamente alto para um prisioneiro, que equivalia ao resgate de um rei. Essa transação monetária, realizada em novembro de 1430, selou o destino de Joana, transformando-a de prisioneira de guerra em objeto de um julgamento político-religioso.

Os ingleses a queriam tanto porque Joana d’Arc representava a personificação da esperança francesa e a causa de suas humilhantes derrotas em Orléans e na campanha do Loire. Sua capacidade de inspirar as tropas francesas e reverter o curso da guerra era vista como algo sobrenatural e, portanto, deveria ser obra do diabo, aos olhos dos clérigos ingleses e seus aliados. Desmascará-la como herege anularia a validade de sua missão e de todos os seus feitos.

Ao provar que Joana era uma bruxa ou uma herege, os ingleses poderiam argumentar que Carlos VII havia sido coroado por uma agente do mal, o que deslegitimaria sua ascensão ao trono. Isso serviria como uma poderosa ferramenta de propaganda para justificar a continuação de sua reivindicação ao trono francês, algo que o Tratado de Troyes já havia supostamente garantido. A derrota de Joana no tribunal seria, para eles, uma vitória muito mais duradoura do que qualquer batalha em campo aberto.

Além disso, a condenação de Joana d’Arc por uma corte eclesiástica francesa, presidida por um bispo francês, daria uma aparência de legalidade e imparcialidade ao processo, mesmo que a corte estivesse sob forte influência e pressão inglesa. Isso era crucial para a propaganda, pois uma condenação puramente militar ou política não teria o mesmo peso moral ou a mesma capacidade de descreditar a figura da Donzela perante a cristandade, e a reputação da Igreja seria utilizada para validar a decisão.

Assim, Joana foi transferida para Rouen, a capital inglesa da Normandia, e encarcerada em uma torre do Castelo de Rouen, sob a vigilância de guardas ingleses. Sua prisão era severa, e ela foi mantida em correntes, sob a ameaça constante de agressões. O palco estava montado para um julgamento que não visava a busca da verdade, mas sim a condenação predeterminada de uma jovem que ousou desafiar o poder estabelecido, e os preparativos para o processo eram minuciosos.

Onde e como o julgamento de Joana d’Arc foi conduzido?

O julgamento de Joana d’Arc foi conduzido na cidade de Rouen, então capital da Normandia ocupada pelos ingleses, entre fevereiro e maio de 1431. A escolha de Rouen não foi aleatória; era um centro de poder inglês na França, o que garantia que o processo seria realizado sob sua influência direta e controle, longe de qualquer interferência francesa leal a Carlos VII. O local físico do julgamento variou, ocorrendo em diferentes câmaras do Castelo de Rouen, onde Joana estava aprisionada, e ocasionalmente em outros edifícios eclesiásticos na cidade.

O tribunal que julgou Joana foi um tribunal eclesiástico, oficialmente presidido por Pierre Cauchon, Bispo de Beauvais. Embora fosse um tribunal da Igreja, ele operava sob a forte pressão e supervisão da Coroa Inglesa, particularmente do Duque de Bedford, regente da França em nome do jovem Henrique VI. A presença de um grande número de clérigos franceses, em sua maioria simpatizantes dos borgonheses ou dos ingleses, dava ao processo uma aparência de legitimidade religiosa, o que era essencial para os objetivos ingleses.

O julgamento foi dividido em duas fases principais: a fase “ordinária”, que consistia em uma série de interrogatórios públicos e privados, e a fase “extraordinária”, que lidava com as acusações formais e a sentença. Ao todo, Joana foi submetida a cerca de quinze sessões de interrogatório, muitas delas exaustivas e capciosas, buscando extrair dela confissões ou declarações que pudessem ser usadas contra ela, com a presença de notários para registrar cada palavra.

Os inquisidores e juízes, cerca de 130 clérigos em diferentes momentos, eram em sua maioria doutores em teologia e direito canônico da Universidade de Paris, uma instituição que havia se alinhado com a facção inglesa. A presença de tantos eruditos e a complexidade das questões teológicas levantadas demonstravam a intenção de dar ao julgamento uma aura de rigor acadêmico e legal, embora o veredito final já estivesse, em grande parte, predeterminado pela pressão política.

Joana d’Arc foi negada o direito a um advogado de defesa, e ela teve que se defender sozinha contra uma acusação altamente preparada e com recursos ilimitados. Ela foi mantida em uma cela prisional sob vigilância constante de guardas ingleses, que eram frequentemente agressivos e inadequados para a custódia de uma mulher, o que era uma violação do devido processo eclesiástico, que exigiria que ela estivesse sob a custódia de mulheres.

Os procedimentos do julgamento foram meticulosamente registrados por notários, e esses registros são as principais fontes históricas sobre o que ocorreu. No entanto, é importante notar que esses registros foram feitos pelos acusadores, e Joana frequentemente reclamava que suas palavras eram deturpadas ou incompletas. A condução do julgamento, portanto, foi uma farsa legal, destinada não a buscar a verdade, mas a construir um caso para a condenação de Joana.

A atmosfera do tribunal era opressiva e intimidadora, com Joana, uma jovem analfabeta, confrontada por dezenas de homens letrados e poderosos que buscavam sua condenação a qualquer custo. Apesar da enorme pressão, ela manteve uma dignidade notável e uma firmeza inabalável em sua fé e nas suas vozes, demonstrando uma força interior que surpreendia até mesmo seus algozes, e sua postura era de desafio corajoso.

Quais foram as principais acusações contra Joana d’Arc durante o julgamento?

Durante o julgamento em Rouen, Joana d’Arc enfrentou uma extensa lista de acusações, cuidadosamente elaboradas para garantir sua condenação, misturando elementos de direito canônico com pretextos políticos. A principal acusação, e a mais grave aos olhos da Igreja, era a de heresia. Isso englobava a alegação de que suas “vozes” e visões não eram de origem divina, mas sim demoníacas, implicando que ela era uma agente do diabo e, portanto, uma ameaça à fé cristã.

Relacionada à heresia estava a acusação de feitiçaria e magia, baseada na crença de que ela usava encantos e pactos com demônios para obter suas vitórias militares e prever o futuro. Os inquisidores buscavam evidências de práticas supersticiosas ou rituais pagãos, o que era comum em julgamentos de bruxaria da época. Essa acusação visava a deslegitimar suas ações militares e a desmoralizar o apoio popular que ela recebia, atribuindo-o a poderes malignos.

A questão do vestuário masculino foi uma das acusações mais persistentes e problemáticas para Joana. A lei canônica proibia as mulheres de usarem roupas masculinas, citando passagens bíblicas. Joana argumentou que suas vozes a instruíram a usar essas vestes para sua proteção e para cumprir sua missão militar. Para seus acusadores, essa persistência em usar roupas de homem, mesmo na prisão, era uma prova de desobediência e heresia, e um desafio direto à autoridade eclesiástica, sendo uma forma de reafirmar a independência que a Igreja buscava reprimir.

Ela também foi acusada de blasfêmia e orgulho, por afirmar que recebia instruções diretas de Deus e por se recusar a submeter suas visões à autoridade da Igreja visível na terra. A insistência de Joana em sua própria conexão direta com o divino era vista como uma afronta à hierarquia eclesiástica, que se considerava a única intérprete legítima da vontade de Deus. Para eles, sua autonomia espiritual era um sinal de desafio e arrogância, um perigo para a ordem estabelecida.

Outras acusações incluíam a tentativa de suicídio por saltar de uma torre (quando ela tentou escapar do cativeiro), o que era considerado um grave pecado. Além disso, foi acusada de idolatria por ter uma bandeira com imagens sagradas e por supostamente atribuir poderes mágicos a ela, algo que ela veementemente negou, afirmando que a bandeira era um símbolo de sua missão e não um objeto de adoração em si, e essa era uma forma de distorcer suas intenções.

A recusa de Joana em se submeter plenamente ao tribunal eclesiástico, insistindo que ela respondia apenas a Deus e à Igreja Triunfante (os santos e anjos), e não à Igreja Militante (os clérigos na terra), também foi interpretada como um sinal de heresia. Essa distinção teológica, embora sutil, era crucial, pois negava a autoridade terrena dos juízes sobre sua consciência, o que era inaceitável para um tribunal que buscava controle absoluto, e a jurisdição da corte estava em questão.

Todas essas acusações convergiam para o objetivo final de condená-la como uma herege e, ao fazê-lo, desacreditar Carlos VII e toda a causa francesa. O julgamento não era uma busca pela justiça, mas uma ferramenta política, disfarçada de processo religioso, para destruir a reputação da Donzela de Orléans e de seu rei, e assim solidificar o domínio inglês na França, eliminando a inspiração que ela representava para os franceses.

Como Joana d’Arc se defendeu e qual a sua postura diante dos interrogatórios?

Joana d’Arc, apesar de sua falta de educação formal e de sua condição de jovem camponesa analfabeta, demonstrou uma inteligência notável e uma postura desafiadora e firme diante dos exaustivos interrogatórios no julgamento de Rouen. Ela se defendeu com base em sua fé inabalável, na autenticidade de suas vozes divinas e na retidão de suas intenções, recusando-se a admitir culpa ou a abjurar de sua missão. Sua simplicidade e sinceridade contrastavam com a erudição e a sagacidade de seus inquisidores.

Durante os interrogatórios, que muitas vezes duravam horas e eram repletos de perguntas capciosas e armadilhas teológicas, Joana respondeu com uma clareza e lógica surpreendentes. Ela frequentemente pedia que as perguntas fossem reformuladas se as considerasse enganosas, e exigia que as respostas fossem registradas exatamente como ditas. Essa perspicácia processual, em alguém sem formação jurídica, frustrava os juízes e evidenciava sua agudeza mental.

Um exemplo notável de sua defesa foi quando perguntada se ela sabia se estava em estado de graça. Essa era uma pergunta-armadilha, pois responder “sim” seria presunção (pecado de orgulho), e responder “não” seria admitir culpa. Joana respondeu: “Se não estou, que Deus me ponha; se estou, que Deus me mantenha.” Esta resposta, tanto teologicamente correta quanto astutamente evasiva, deixou os juízes atônitos, mostrando a profundidade de sua compreensão espiritual.

Sobre suas vozes, ela sempre afirmou que eram de Deus e dos santos, e que elas eram sua guia e sua autoridade suprema. Ela se recusou a submeter a veracidade de suas visões à avaliação do tribunal, argumentando que as vozes haviam vindo a ela diretamente de Deus. Essa insistência em uma relação pessoal com o divino, sem a intermediação da hierarquia eclesiástica presente, era vista como um desafio direto à autoridade da Igreja visível, mas para ela era uma verdade fundamental.

A questão das roupas masculinas era outra frente de batalha. Joana explicou que era uma ordem divina para a proteção e para o cumprimento de sua missão militar. Mesmo na prisão, ela se recusou a vestir roupas femininas, o que seus carcereiros ingleses esperavam para flagrá-la em recaída. Sua obstinação nisso era vista como desobediência e heresia, mas para Joana era uma questão de fidelidade à sua missão e à sua segurança pessoal diante dos riscos que corria.

Joana também demonstrou uma notável coragem física e psicológica. Ela suportou o cativeiro rigoroso, a falta de sono, as ameaças de tortura (embora não tenha sido fisicamente torturada durante o julgamento) e a pressão de dezenas de homens letrados. Sua resiliência em face de tal adversidade é um testemunho de sua força interior e sua fé inquebrantável, o que a fazia uma figura de espanto para seus algozes.

Apesar de todas as táticas dos inquisidores para quebrar sua vontade e forçá-la a confessar culpas ou a contradizer-se, Joana permaneceu consistente em suas afirmações e na sua crença na justeza de sua causa. Sua defesa, embora não baseada em termos legais complexos, mas na simplicidade e na profundidade de sua fé, revelava uma dignidade extraordinária em meio a um processo manifestamente injusto.

Quais foram os momentos críticos e as pressões enfrentadas por Joana d’Arc no julgamento?

O julgamento de Joana d’Arc foi repleto de momentos críticos e pressões psicológicas intensas, projetadas para quebrar sua resistência e forçá-la a uma confissão que legitimasse sua condenação. Um dos pontos mais cruciais foi a exaustão dos interrogatórios, que eram conduzidos por dezenas de eruditos e juristas, muitas vezes por horas a fio, com perguntas repetitivas e capciosas, visando a fazê-la contradizer-se ou ceder sob a pressão do tribunal.

A privação de direitos básicos, como o acesso a um advogado, e a natureza do cativeiro de Joana também eram formas de pressão. Ela foi mantida em uma cela com guardas masculinos ingleses, uma situação perigosa e imprópria para uma mulher, que visava a intimidá-la e possivelmente a forçar uma quebra de seu voto de castidade, o que seria usado contra ela. Essa situação de vulnerabilidade constante minava sua estabilidade emocional e física, embora ela mantivesse sua compostura.

A ameaça de tortura foi outro instrumento de pressão, embora a igreja proibisse a tortura para clérigos e mulheres. Joana foi levada à sala de tortura, onde lhe mostraram os instrumentos, mas a ameaça verbal era suficiente. Ela se manteve firme, afirmando que qualquer coisa que dissesse sob tortura seria falsa e que ela se manteria em sua fé. Essa demonstração de coragem inabalável frustrou os inquisidores, que recuaram de usar a tortura física, preferindo usar a pressão psicológica.

O momento mais crítico foi a cerimônia de abjuração, em 24 de maio de 1431, no cemitério de Saint-Ouen. Confrontada com a fogueira, e sob a promessa de que seria entregue à Igreja para prisão perpétua em condições mais humanas se abjurasse, Joana, após meses de isolamento e assédio, assinou um documento de abjuração. Ela retratou suas “vozes” e prometeu vestir-se como mulher. Esse ato, embora forçado, foi uma vitória temporária para seus algozes.

No entanto, a abjuração de Joana foi de curta duração. Poucos dias depois, de volta à sua cela e sob a mesma vigilância hostil, ela retomou as roupas masculinas. Há várias teorias para isso: talvez tenha sido forçada pelos guardas ingleses, talvez fosse uma forma de proteger-se contra assédio sexual, ou talvez tenha sido uma reafirmação de sua fé e missão divina. Independentemente do motivo, essa “recaída” foi o momento que seus inimigos esperavam.

A “recaída na heresia”, ou seja, o retorno às vestes masculinas e a reafirmação de suas vozes, foi o que selou seu destino. Segundo o direito canônico, um herege que abjurava e depois recaía, era considerado um “relapso” e estava sujeito à pena de morte na fogueira, sem possibilidade de recurso. Este ato foi fundamental para os inquisidores, pois lhes deu a base legal para a sentença capital, sem precisar de novas provas contra ela, sendo a justificação final para o veredito.

Os juízes, especialmente Cauchon, agiram rapidamente para emitir a sentença de morte, aproveitando a recaída como a justificativa final. Joana havia resistido a todas as pressões e armadilhas, mas a complexidade da abjuração e a subsequente “recaída” foram o ponto de virada que permitiu a seus inimigos levarem a cabo sua condenação premeditada. Este momento marcou o fim de sua luta pela vida e o início de seu caminho para o martírio, o que demonstra a implacabilidade do tribunal.

Por que Joana d’Arc foi condenada à morte e qual foi a base legal?

Joana d’Arc foi condenada à morte essencialmente por heresia reincidente, que era a acusação mais grave no sistema legal eclesiástico da época. A base legal para sua condenação não era baseada em provas de feitiçaria ou idolatria de maneira conclusiva, mas sim na sua persistência em seguir suas “vozes” e no seu uso de roupas masculinas, que foram interpretados como sinais de desobediência e apostasia à autoridade da Igreja.

A acusação de heresia foi central. O tribunal, controlado pelos ingleses e seus aliados, alegou que as vozes de Joana eram de origem demoníaca e que ela se recusava a submeter suas visões ao julgamento da Igreja terrena. Para o tribunal, essa insubmissão era a essência da heresia, pois a Igreja se considerava a única guardiã da verdade divina e a intérprete autorizada das escrituras, e qualquer desvio era visto como uma afronta à sua autoridade.

O fator decisivo para a condenação à morte foi sua “recaída” na heresia. Após a abjuração em Saint-Ouen, onde ela prometeu se submeter à Igreja e usar roupas femininas, Joana voltou a vestir as vestes masculinas na prisão. Para o tribunal, isso era uma prova inegável de que ela havia retornado aos seus erros, e um herege que abjurava e depois recaía não tinha mais direito a um julgamento, sendo imediatamente sentenciado à pena capital pela lei canônica, e essa era uma regra implacável.

A acusação de vestir roupas masculinas era particularmente destacada. Embora possa parecer trivial hoje, na Idade Média era considerada uma transgressão grave, um ato de desobediência às leis divinas e humanas, e potencialmente um sinal de heresia ou inversão de papéis de gênero, que a Igreja via como perigosa e desordenada. A persistência de Joana nesse hábito, mesmo após sua abjuração, foi usada como a evidência final de sua irrecuperabilidade.

O julgamento foi, na sua essência, um processo político disfarçado de inquérito religioso. Os ingleses queriam a condenação de Joana para deslegitimar a coroação de Carlos VII e desacreditar sua figura de heroína nacional. Pierre Cauchon, o bispo que presidiu o julgamento, era um aliado inglês ferrenho e tinha interesse pessoal em sua condenação para ascender na hierarquia eclesiástica. A legalidade do processo foi, portanto, manuseada e distorcida para servir a esses fins políticos, e a justiça era secundária.

A base legal do julgamento residia nas leis canônicas sobre heresia e apostasia. Embora houvesse muitas irregularidades processuais, como a falta de um advogado de defesa para Joana e o fato de ela ter sido mantida em custódia leiga (inglesa) em vez de eclesiástica, a condenação foi formalmente baseada na recusa dela em se submeter à Igreja e na sua reincidência. O veredito, portanto, foi o de que ela era uma herege “relapsa”, e essa classificação selava o seu destino sem apelação.

Ao entregá-la ao braço secular (o governo inglês) para execução, a Igreja se isentava formalmente do ato de derramamento de sangue, embora a condenação eclesiástica fosse a força motriz por trás da sentença de morte. A decisão de condená-la à fogueira foi o culminar de um julgamento viciado, movido por motivações políticas e vingativas, que utilizou a lei eclesiástica como um instrumento de poder, e a sentença era inevitável.

Como foi a execução de Joana d’Arc em Rouen?

A execução de Joana d’Arc ocorreu na manhã de 30 de maio de 1431, na Praça do Velho Mercado (Place du Vieux-Marché), em Rouen, capital da Normandia ocupada pelos ingleses. O evento foi planejado para ser um espetáculo público e uma demonstração de força e autoridade tanto da Coroa Inglesa quanto da Igreja, visando a intimidar a população francesa e a eliminar a figura inspiradora que Joana representava. Uma multidão imensa se aglomerou para testemunhar o trágico fim da Donzela.

Joana, que contava então com apenas 19 anos, foi levada da sua cela para a praça, vestindo uma simples túnica branca. Ela estava acompanhada por dois frades dominicanos, Jean L’Advenu e Martin Ladvenu, que a confortaram em seus últimos momentos. O cortejo atravessou as ruas de Rouen sob forte guarda, e Joana manteve sua compostura e dignidade, embora se mostrasse visivelmente abalada pela iminência da morte, o que era natural para qualquer ser humano.

Ao chegar à praça, ela foi colocada sobre uma alta pira de madeira. Antes da execução, um sermão final foi proferido por Nicolas Midi, um dos juízes, que a repreendeu por seus “crimes” de heresia e apostasia, condenando-a como uma “herege relapsa” e excomungada. Joana ouviu as palavras com seriedade, e sua resposta foi de profundo lamento por seu rei e por seu povo, não de autopiedade, demonstrando sua inabalável lealdade.

Na fogueira, Joana pediu por uma cruz. Um soldado inglês, tocado pela cena, improvisou uma pequena cruz de madeira com dois pedaços de pau, que ela beijou e colocou em seu peito. Um frade também correu para buscar uma cruz da igreja próxima, que ela fixou diante de si, olhando para ela até o último momento. Sua fé inabalável em Deus e nos santos foi evidente até o fim, e essa fé era a sua última e derradeira fortaleza.

Quando o fogo foi aceso, Joana começou a gritar o nome de Jesus, repetindo-o várias vezes com voz forte, clamando aos céus por clemência e reforçando sua devoção cristã. Suas últimas palavras registradas, segundo testemunhas, foram “Jesus! Jesus! Jesus!”, e ela implorou ao Senhor por sua alma. Sua morte foi um martírio lento e doloroso, mas ela não vacilou em sua fé, o que chocou muitos dos presentes, e sua bravura final deixou uma marca indelével.

Após a morte, para garantir que não houvesse dúvidas sobre o seu falecimento e para evitar que seus seguidores pudessem alegar que ela havia escapado por milagre, o carrasco foi instruído a afastar o fogo para que o corpo de Joana pudesse ser visto. Depois, o corpo foi novamente queimado, e as cinzas foram jogadas no rio Sena, para que não houvesse relíquias que pudessem ser veneradas por seus admiradores e para eliminar qualquer vestígio físico da Donzela, um ato de extrema crueldade e controle.

A execução de Joana d’Arc foi um evento sombrio na história, um ato de brutalidade motivado por ódio político e religioso. No entanto, em vez de extinguir sua influência, sua morte na fogueira transformou-a em uma mártir e uma santa aos olhos de muitos, e o impacto de seu sacrifício reverberaria por séculos, consolidando sua legenda e legado.

Qual foi o impacto imediato da morte de Joana d’Arc na Guerra dos Cem Anos?

A morte de Joana d’Arc em maio de 1431, embora tenha sido uma vitória propagandística para os ingleses e seus aliados, não resultou no impacto imediato e decisivo que eles esperavam na Guerra dos Cem Anos. Pelo contrário, sua execução na fogueira, em vez de desmoralizar completamente os franceses, acabou por cimentar sua imagem como uma mártir da causa francesa, galvanizando ainda mais o sentimento nacionalista e a resistência contra o domínio inglês.

Inicialmente, a ausência de Joana no campo de batalha foi sentida. O exército francês perdeu sua figura mais inspiradora e a aura de invencibilidade que ela havia trazido. Carlos VII, embora já tivesse retomado parte de sua própria agência e dependência, não era um líder carismático no mesmo grau que Joana. Houve um período de hesitação e de atividades militares mais contidas por parte dos franceses, mas isso não significou o fim da guerra ou a capitulação.

No entanto, o impacto a longo prazo foi paradoxalmente benéfico para a França. A brutalidade do julgamento e da execução de Joana, orquestrada por clérigos franceses aliados aos ingleses, chocou muitos e gerou simpatia pela causa francesa. A figura da jovem camponesa queimada como herege, que clamava o nome de Jesus até o fim, tornou-se um símbolo poderoso da injustiça e da opressão estrangeira. Isso contribuiu para minar o apoio interno dos ingleses e para o crescimento do nacionalismo francês.

Um dos resultados mais significativos foi o rompimento da aliança anglo-borgonhesa, o que seria fatal para as ambições inglesas na França. Em 1435, quatro anos após a morte de Joana, o Duque Filipe, o Bom da Borgonha, assinou o Tratado de Arras com Carlos VII. Este tratado encerrou a guerra civil francesa entre Armagnacs e Borgonheses e selou uma aliança entre a Borgonha e o rei da França, removendo um pilar fundamental do poder inglês na França. A perda do apoio borgonhês isolou os ingleses estrategicamente, e o preço da aliança era um arrependimento para os ingleses.

A morte de Joana também parece ter despertado em Carlos VII uma maior determinação para lutar. Libertado da sombra da Donzela e da dependência de sua inspiração, o rei se cercou de conselheiros militares competentes e começou a reformar o exército francês, profissionalizando-o e dotando-o de uma artilharia eficaz. A fase final da Guerra dos Cem Anos, após 1431, viu uma série de vitórias francesas sistemáticas, culminando na expulsão quase completa dos ingleses do continente.

Assim, embora a fogueira de Rouen tenha silenciado a voz de Joana d’Arc, ela paradoxalmente acendeu uma chama de resistência e unidade na França que, em última análise, levou à vitória francesa na Guerra dos Cem Anos em 1453. A execução, pretendida como um ato final de humilhação, tornou-se o catalisador para a reafirmação da soberania francesa, e Joana se tornou um mártir e um símbolo eterno.

Como a figura de Joana d’Arc foi reabilitada postumamente e por que?

A reabilitação póstuma de Joana d’Arc é um capítulo tão notável quanto sua vida e morte, demonstrando a complexidade das motivações políticas e religiosas que a cercavam. Vinte e cinco anos após sua execução, em 1456, um novo julgamento, conhecido como “Processo de Reabilitação”, foi conduzido. Esse processo anulou a condenação de 1431, declarando-a uma mártir e inocente das acusações de heresia, um movimento que teve profundas implicações para a coroa francesa.

A principal força motriz por trás da reabilitação foi o próprio rei Carlos VII. Após a vitória final na Guerra dos Cem Anos e a expulsão dos ingleses da França em 1453, Carlos VII sentiu a necessidade de limpar seu próprio nome e o de seu reino da mancha de ter permitido que uma figura tão crucial para sua ascensão ao trono fosse queimada como herege. A condenação de Joana era um embaraço político e moral, pois ligava a legitimidade de sua coroação à obra de uma suposta feiticeira, algo que precisava ser erradicado.

O processo de reabilitação foi meticulosamente orquestrado e supervisionado pelo Papa Calisto III, a pedido da mãe de Joana, Isabelle Romée, e seus irmãos, que nunca cessaram de lutar por sua memória. O inquérito reuniu mais de cem testemunhas, incluindo muitos que haviam servido com Joana no exército, oficiais da corte, teólogos do primeiro julgamento e habitantes de Domrémy. Esses depoimentos forneceram uma visão abrangente de sua vida, sua fé e sua conduta, e revelaram as numerosas irregularidades e a parcialidade do processo original.

As motivações da Igreja também eram significativas. O Papado, agora com o fim do Grande Cisma do Ocidente e o enfraquecimento do Conciliarismo, buscava reafirmar sua autoridade e integridade. A condenação de Joana, sob a influência inglesa, era vista como uma mancha na justiça eclesiástica. A anulação do veredito anterior permitia à Igreja demonstrar sua capacidade de corrigir erros e de defender a verdade, mesmo que tardiamente, o que fortalecia sua posição.

A reabilitação também serviu para fortalecer o nacionalismo francês. Joana d’Arc era vista como a encarnação do espírito francês de resistência contra a ocupação estrangeira. Ao declará-la inocente e uma serva fiel de Deus, a coroa francesa consolidou sua própria posição como defensora da fé e de seu povo, elevando Joana ao status de heroína nacional e religiosa. Isso ajudava a curar as divisões internas e a construir uma identidade francesa mais forte.

O novo julgamento desmascarou a parcialidade e a ilegalidade do processo de 1431, destacando a manipulação política e as irregularidades jurídicas. Pierre Cauchon, o bispo que presidiu o primeiro julgamento, foi postumamente condenado por sua conduta e por ter agido contra a justiça eclesiástica. A reabilitação de Joana não foi apenas uma declaração de sua inocência, mas também uma condenação dos seus perseguidores e da injustiça que foi cometida.

A decisão de 1456 foi, portanto, um ato de justiça tardia, mas também um movimento político estratégico que beneficiou tanto a monarquia francesa quanto a Igreja. Ela transformou Joana d’Arc de herege queimada em mártir virtuosa, pavimentando o caminho para sua eventual canonização séculos depois e cimentando seu lugar como uma das figuras mais reverenciadas da história francesa.

Qual o legado de Joana d’Arc na história, religião e cultura mundial?

O legado de Joana d’Arc transcende as fronteiras do tempo e da geografia, consolidando-se como uma figura de impacto monumental na história, na religião e na cultura mundial. Sua trajetória, de camponesa a líder militar e mártir, continua a inspirar e a fascinar, tornando-a um símbolo multifacetado que se adapta a diversas narrativas e propósitos. Sua vida, embora breve, ressoa com uma força poderosa através dos séculos.

Na história francesa, Joana d’Arc é o epítome do patriotismo e da resistência. Ela é a heroína nacional que uniu um reino fragmentado e desmoralizado, reverteu o curso de uma guerra aparentemente perdida e garantiu a soberania francesa contra o invasor inglês. Sua figura é intrinsecamente ligada à fundação do sentimento de nacionalidade francesa, tornando-a uma figura central na construção da identidade e do orgulho do país, celebrada em datas cívicas e em monumentos.

No âmbito religioso, o legado de Joana d’Arc é igualmente profundo. Sua persistência em sua fé, suas visões e sua missão divina, mesmo diante da fogueira, a transformaram em uma mártir da fé católica. O processo de reabilitação em 1456 foi o primeiro passo, e sua canonização como santa pela Igreja Católica em 1920 cimentou seu lugar como Santa Joana d’Arc. Ela é venerada como um exemplo de piedade, coragem e devoção, um símbolo de fé inabalável em meio à adversidade.

Culturalmente, Joana d’Arc é uma fonte inesgotável de inspiração para a arte, a literatura, o teatro e o cinema. Desde as crônicas medievais até as obras modernas, sua história foi contada e recontada, adaptada e reinterpretada para diferentes épocas e públicos. Ela aparece em peças de Shakespeare, em óperas, em romances e em inúmeros filmes, cada um explorando diferentes facetas de sua personalidade: a guerreira mística, a jovem camponesa, a vítima de injustiça, ou a líder inspiradora.

Joana também se tornou um ícone feminista, embora essa interpretação seja mais recente e complexa. Em uma sociedade dominada por homens, ela desafiou as convenções de gênero ao liderar exércitos, usar roupas masculinas e falar com autoridade em assuntos militares e religiosos. Sua força, independência e capacidade de influenciar grandes eventos, apesar de ser mulher, ressoam com as lutas pela igualdade de gênero e pelo empoderamento feminino, inspirando muitas mulheres ao longo da história.

Seu legado também é um testemunho da capacidade de um indivíduo comum de moldar o curso da história através da fé, da coragem e da convicção. Ela representa a crença de que mesmo os mais humildes podem ser chamados a grandes feitos e que a determinação e a visão podem superar obstáculos intransponíveis. Sua história continua a servir como um lembrete do poder do espírito humano em face da adversidade e da injustiça sistêmica.

A complexidade e a riqueza de sua história continuam a gerar debates e a inspirar novas interpretações, garantindo que Joana d’Arc permaneça uma figura relevante e poderosa no imaginário coletivo mundial. Sua vida é um testemunho duradouro do poder da fé, da coragem e da resiliência humana diante de desafios extraordinários, e sua mensagem de esperança transcende as barreiras culturais e religiosas.

• As “vozes” de Joana d’Arc: um fenômeno que moldou sua missão.
• A importância da coroação de Carlos VII em Reims para a legitimação de seu reinado.
• O papel crucial de Pierre Cauchon na condenação de Joana d’Arc.
• As estratégias militares de Joana d’Arc no Cerco de Orléans e na Campanha do Loire.
• A abjuração e a recaída: momentos decisivos no julgamento.
• O legado de Joana d’Arc como símbolo de nacionalismo e fé.

• A complexidade da Guerra dos Cem Anos e o papel da Borgonha no conflito.
• O significado teológico das “vozes” de Joana e sua interpretação pela Igreja.
• As consequências da falha em libertar Paris para a estratégia francesa.
• A persistência de Joana d’Arc em suas crenças durante o julgamento.
• O simbolismo da fogueira e o subsequente status de mártir.
• Joana d’Arc como ícone de diferentes movimentos ao longo da história.

Bibliografia

• Pernoud, Régine e Clin, Marie-Véronique. Jeanne d’Arc: Sa vie, son procès, sa réhabilitation.
• Castor, Helen. Joan of Arc: A History.
• Warner, Marina. Joan of Arc: The Image of Female Heroism.
• Lucie-Smith, Edward. Joan of Arc.
• Procès de Condamnation et de Réhabilitation de Jeanne d’Arc. Fontes Primárias.
• Duby, Georges. França na Idade Média: 987-1460.
• Devries, Kelly. Joan of Arc: A Military Leader.